FOLHA
Por que será que, fora das literaturas inglesa e americana, não há quase livros com meninos como heróis principais? Não me refiro a livros infantis, mas a obras como "David Copperfield" e "Oliver Twist", de Dickens, "Kim", de Kipling, "A Ilha do Tesouro", de Stevenson, "Huckleberry Finn" e "Tom Sawyer", de Mark Twain, clássicos que podem ser lidos por adultos ou crianças.
A pergunta surgiu quando começávamos a ler "Huckleberry Finn" nos círculos de leitura do Instituto Fernand Braudel, que atingem 1.300 moças e rapazes da periferia de São Paulo. Por que não existem livros similares nas literaturas brasileira, russa, alemã, francesa? Livros que narrem a história de meninos soltos no mundo, embarcados em aventuras numa jangada no Mississippi, nas rotas empoeiradas da Índia, nas ruas pobres de Londres? Não haverá histórias comparáveis em outras sociedades, não oferecem elas o espaço mínimo de liberdade individual para que tais aventuras se tornem concebíveis? Ou não são histórias que faltam mas gente interessada em contá-las?
Estava pensando nisso quando, em viagem pela Bahia, comentei, não sei mais a propósito de quê, como um começo difícil pode arruinar uma vida. "Não acho", respondeu o motorista, e contou seu exemplo. Não sabe quem foi seu pai. A mãe caíra na vida em cidadezinha do agreste alagoano. Morreu com 36 anos, deixando cinco filhos, dois de meses, literalmente "filhos da p..." do xingamento de rua. Antes de morrer, recomendou aos filhos que não decepcionassem e se apoiassem uns aos outros na vida.
Com um jegue para distribuir água, dava para ele e os irmãos não morrerem de fome. Não contavam com ajuda alguma, pois, em terra de fome crônica, "ninguém ajuda ninguém". Nosso herói tinha nove anos e formavam família de crianças. Com 15 anos, tomou carona num caminhão e desembarcou na rodoviária de Salvador. Perdido, foi logo apanhado por um bombeiro que o levou ao quartel. Pensaram que fosse índio, pelo cabelo comprido. Trataram-no bem -lembra até hoje o gosto do "naco de carne" que lhe deram. O sargento arranjou-lhe trabalho com um cearense que vendia roupas pelo crediário.
Nunca passou por uma porta de escola ou entrou em uma sala de aula. O patrão ensinou-lhe a ler, a contar, a dirigir a Kombi. Aprendeu a vender por comissão, a fazer cobrança. Um a um, trouxe os irmãos, hoje todos bem de vida.
Com 20 anos, conseguiu emprego de motorista no pólo de Camaçari porque, "por sorte, ainda não exigiam o segundo grau". Logo serviu ao diretor da empresa e o acompanhou em vários empregos, sempre recebendo os pacotes de indenização com os quais comprou o táxi e a placa. "Era antes da terceirização." Aos 21 anos, casou e ensinou a mulher a dirigir a Kombi e a ganhar um dinheirinho, transportando a criançada da vizinhança para a escola. Foi melhorando de carro, está numa cooperativa, mora em casa própria e tem três outras de aluguel.
Sobretudo, fez com que os três filhos completassem a universidade, não a pública "porque vivia em greve". Uma filha, engenheira química, trabalha na maior petroquímica do país. O filho, engenheiro mecânico, é estagiário na mesma empresa. O dono, a quem serve, ficou surpreso que ele não lhe tivesse pedido para admitir os filhos. Fez questão que entrassem por mérito. A outra filha é advogada.
É um belo tipo de sertanejo, alto, magro, acobreado. Inteligente, lê tudo o que lhe cai nas mãos e está informado sobre os problemas do Brasil e do Nordeste. Católico de fé profunda mas individual, está convencido de que Deus gosta dele e nada faz sem lhe pedir licença em oração. Quando perguntei se tinha viajado sozinho para Salvador, respondeu: "Não senhor, Deus veio comigo".
Pondo de lado os enfeites, o Natal é, em essência, uma história de salvação, a de Deus que se fez criança para salvar primeiro as prostitutas e os pecadores. Haverá melhor aventura de criança que "acabe bem" como esta, haverá história de redenção mais maravilhosa que a do alagoano Cícero?