O ano político de 2006 já começou, e mal. Se a patuléia não cuidar do que é seu, será o ano durante o qual parlamentares, governantes e tesoureiros conseguirão impor à sociedade o escrachamento da moralidade pública. Nessa festa os petistas são os mais estridentes, mas não estão sós. O Réveillon da pizza começou no dia 20 de dezembro, na Assembléia Legislativa do Ceará. Lá, por 23 votos a 16, o deputado José Nobre Guimarães (irmão do comissário José Genoino, ex-presidente do PT) livrou-se da cassação por ofensa ao decoro parlamentar. O doutor sacara R$ 250 mil nas arcas de Delúbio Soares. Disse que usou o dinheiro para pagar dívidas de campanha dos companheiros e ficou combinado que nada fez de reprovável. A pizza foi condimentada com Hino Nacional, militância trazida de ônibus e discurso numa sacada da Assembléia.
José Guimarães tornou-se nacionalmente conhecido em julho passado, quando o chefe de seu gabinete foi detido pela Polícia Federal no aeroporto de Congonhas. Tinha R$ 200 mil na maleta e US$ 100 mil (R$ 230 mil) na cueca. Explicou que o ervanário, suficiente para a compra de 400 toneladas de pepinos, era produto da venda de legumes no mercado paulista. Ao saber do contratempo, José Guimarães perguntou: "Ele falou alguma coisa ao ser preso? (...) Ainda bem".
Guimarães está arrolado no inquérito da cueca. Sua absolvição, contudo, refere-se aos R$ 250 mil do "valerioduto" (suficientes para a compra de mais 250 toneladas de pepinos). Os deputados cearenses decidiram que o decoro parlamentar está acima de bobagens como receber dinheiro que não se sabe de onde veio nem se sabe para onde foi.
A pizza cearense teve três ingredientes que apontam para a transformação da urucubaca de 2005 no escárnio de 2006. O primeiro está no resultado da votação. Seriam necessários 24 votos para cassar Guimarães, mas só apareceram 16. Como os tucanos da Assembléia cearense são 17, pelo menos um deles recusou-se a puni-lo. O segundo está na composição da bancada pizzaiola. Há na política cearense uma corrente denominada "cirista", liderada pelo o ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes. Seu irmão Cid é provável candidato ao governo do Estado e um outro, Ivo, é deputado estadual. Se os oito votos dos "ciristas" fossem somados aos 17 tucanos, José Nobre Guimarães estaria cassado. Deu-se o contrário e, em seu discurso de vitória, o doutor agradeceu a ajuda que acredita ter recebido de Ivo Gomes.
O terceiro ingrediente é, de longe, o mais perturbador. Dois hierarcas federais deram expediente na Assembléia durante o dia da votação: Eudoro Santana, diretor-geral do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas, o Dnocs, e Roberto Smith, presidente do Banco do Nordeste. Juntos, cuidam de uma caixa de R$ 3,5 bilhões anuais. Dinheiro da Viúva. Ambos estão na área de influência do ministério de Ciro Gomes. José Guimarães agradeceu nominalmente aos dois "altos companheiros". Santana circulou no plenário e Smith deu-lhe um espalhafatoso abraço. Não há memória de presidente de banco estatal em papel parecido.
Lula diz que foi traído por petistas que fizeram o que não deviam. Resta ao Nosso Guia explicar à choldra o que faziam Santana, do Dnocs, e Smith, do BNB, na Assembléia Legislativa durante a votação e na posterior comemoração do resultado. Lula só teria sido traído se fosse um bobo. Como bobo ele não é, traídos ficam aqueles que acreditam nele.
O que aconteceu em Fortaleza foi mais uma etapa da degenerescência da estratégia petista de banalização de suas malfeitorias. A democracia brasileira não está ameaçada por uma eventual (e fraudulenta) transformação de Lula em Hugo Chávez. A ameaça está no escrachamento da moralidade pública.