Aparentemente, a eleição de Evo Morales para a Presidência da Bolívia não deveria ter maiores repercussões para o Brasil, salvo no setor da Petrobrás, pois essa empresa responde sozinha por cerca de 20% do PIB daquele país. Neste sentido, caso os bens dessa estatal brasileira forem expropriados ou nacionalizados, os efeitos de uma tal medida se verão sentir em nosso país, sobretudo se uma tal ação vier acompanhada da aprovação do governo Lula por razões de ordem ideológica. Nada é impossível no Brasil de hoje, considerando as incoerências e contradição do PT no poder. Quando até a corrupção sistêmica do Estado é chamada de "denuncismo" por nosso presidente, qualquer coisa pode acontecer, inclusive nada.
Contudo, há um aspecto propriamente político que deve ser levado em consideração, sobretudo se atentarmos para o continente sul-americano. Há um aspecto que exerce um certo glamour em Morales, pois se trata de um líder de ascendência indígena, cuja etnia ascende por primeira vez ao poder. Os índios foram sempre excluídos socialmente e politicamente da sociedade boliviana, de tal maneira que sua eleição se reveste de um significado particular. No entanto, esse aspecto propriamente antropológico não deve ofuscar que sua conquista do poder se faz pelas idéias mais retrógradas produzidas pelo marxismo. Seu discurso é o de um velho comunista que nada viu, nem nada aprendeu com as experiências totalitárias do século XX. Suas declarações sobre os "yanques", sobre Bush enquanto "terroristas (para uma cadeia de televisão árabe, que veicula regularmente as declarações de Osama Bin Laden), sobre a "estatização" das empresas de petróleo e de gás, contra o "mercado" e sua admiração incontida por Chávez e Fidel mostram bem que esse país enveredará novamente para uma repetição de experiências que já não deram certo em outros países. Imediatamente, teremos uma volta do velho populismo de esquerda latino-americano, com retórica revolucionária e irresponsabilidade fiscal e das contas públicas, num mesmo movimento de incentivo à sublevação dos movimentos denominados sociais.
O problema, porém, consiste em que sua eleição se inscreve num marco mais geral da América Latina, onde despontam Kirchner e Chávez. A retórica desses dois personagens, com matizes distintos, se ancora numa suposta auto-suficiência desse continente, que seria vítima da exploração "ianque". A bandeira anti-Alca responde precisamente a essa necessidade política. Bastaria, com a sua simplicidade, uma reafirmação da soberania nacional para que a libertação, enfim, se produzisse. Enquanto etapa desse processo, seria necessária uma união, a união dos "bolivarianos" na retórica do venezuelano, que poderia compreender uma aliança do tipo da do Mercosul. Não seria uma mera coincidência que Kirchner propusesse, com o apoio do Brasil, que a Venezuela se tornasse membro pleno do Mercosul, sem preencher nenhuma das condições para isto, e o próprio Lula defendesse a entrada da Bolívia de Morales nessa mesma entidade. Arma-se uma teia ideológico-política que daria sustentação a uma luta de tipo "antiimperialista", tendo a Cuba de Fidel como seu farol longínquo.
Kirchner se distingue de Chávez por razões mais diretamente vinculadas à história recente Argentina, como a moratória da dívida externa, e o próprio populismo desse país, que se alterna em suas vertentes de esquerda e de direita. O presidente argentino, por exemplo, está agora querendo controlar a inflação com o controle de preços, exercido por seus fiscais, numa repetição prosaica dos fiscais de Sarney. Já vivemos essa história com o descontrole subseqüente da inflação e das contas públicas. A diferença, porém, em relação a nosso país é que esse populismo econômico vem acompanhado de um discurso de forte teor esquerdista, que tem na companhia de Chávez um coadjuvante à altura. O presidente venezuelano, por sua vez, está em franco processo de radicalização política, impondo progressivamente uma ditadura ao seu país, com milícias armadas que respondem diretamente a ele, o controle total do Poder Judiciário e agora, também, do Legislativo, e com a imposição de leis que restringem severamente a liberdade de imprensa existente naquele país. Seu objetivo de tornar a Venezuela uma nova Cuba é claramente afirmado em seus intermináveis discursos.
A questão se torna ainda mais relevante por essa constelação produzir-se num momento em que o governo Lula dá signos manifestos de exaustão, com uma corrupção generalizada, acompanhada de um enfraquecimento do Poder Legislativo patrocinado pelo mesmo PT. As recentes pesquisas de opinião mostram um esgotamento da figura de Lula, que disputaria a reeleição com poucas chances de vitória. As alas mais reformistas do PT ficaram manchadas pela crise ética, como se os radicais fossem os puros e os imaculados. Dentro de um partido com problemas cada vez mais agudos de identidade, o que ocorre na Argentina, na Venezuela e na Bolívia pode exercer uma poderosa atração, propiciando uma unidade interna das diversas tendências petistas, reforçada, ademais, por intelectuais em busca de uma causa e sem nenhum comprometimento com a verdade. Certamente, o ano de 2006 será conturbado!