quinta-feira, novembro 24, 2005

ROBERTO ROMANO Imaginários golpes de Estado

FSP



O PT insiste na pretensa conspiração "elitista" da imprensa. Antes de parolar sobre o assunto, deve-se definir as condições e os beneficiários daqueles intentos e contra quem eles seriam empreendidos.
Segundo Aristóteles, os governos tombam "com auxílio de fraudes e astúcias". E Justo Lipsio acrescenta: "não seria ruim defendê-los usando meios idênticos". Gabriel Naudé, em "Considerações Politicas sobre o Golpe de Estado" (1639), afirma ser todo golpe um conjunto de ações ousadas que os governantes executam contra o direito comum sem respeitar a Justiça, "jogando com o interesse particular em prol do bem público".


Um tipo de intelectual petista, com base em reportagens da imprensa, espalha boatos indignos de qualquer acadêmico


Naudé indica cinco regras dos golpes. Primeira: trapacear, porque "as leis perdoam os delitos que a força obriga a cometer". Segunda: o golpe sempre simula algum proveito público. Terceira: ele nunca deve ser feito apressadamente. Quarta: o golpista deve parecer médico, não carrasco. Ele corta as partes frágeis da oposição política, deixa as demais para o fim. Quinta: para desarmar os inimigos, agir como hipócrita, torcer a cara como um pai quando cauteriza a ferida de seu pimpolho.
Entre as técnicas do golpe, vêm os boatos de calamidades econômicas e religiosas caso "algo" não seja feito para remediar... o suposto golpe da oposição. Para fabricar a boataria, deve o governo usar pregadores bem falantes, de preferência os que parecem isentos.
A astúcia usada pelo PT chega à virulenta fraude e segue as regras de Naudé. Acusando sem provas, intelectuais petistas espalham boatos irresponsáveis sobre um fantástico golpe de Estado midiático. Tal desonestidade segue receita infalível: grita, mas sem indicar os pretensos golpistas.
"Elite" e "imprensa" são nomes abstratos e arrebanham a tudo e a todos. Calando o endereço de grupos ou indivíduos ("elite" supõe tanto a classe média empobrecida como os banqueiros que nadam nos lucros garantidos pelo governo dos "companheiros"), os falastrões petistas atacam a "imprensa burguesa". Esta servia bem quando os petistas não se refestelavam no poder.
Todas as fraudes são usadas na tarefa nauseante de caluniar jornais e profissionais da imprensa. Vladimir Poleto, com a face luzidia, diz que foi "constrangido" por um jornalista a mentir para a revista "Veja". E alega a própria torpeza: estava com o bandulho cheio de cachaça. Na cópia eletrônica da entrevista surgiu a mentira real. Ocorre um asqueroso espetáculo barroco desempenhado pelo petismo: a mentira cobre a mentira, a fraude esconde e revela a fraude.
Já outro tipo de intelectual petista, com base em reportagens da imprensa, espalha boatos indignos de qualquer acadêmico sério.
É o caso de uma professora que proclama seguir Espinosa, mas cujo manual predileto se encontra nas prateleiras do conhecido "Agitprop", a outra face da repressão stalinista.
De quem segue Espinosa se espera rigor teórico. A especialista em ética e política leu uma reportagem publicada por Marina Amaral na "Caros Amigos". Até aí, nada a comentar. Respeito os profissionais liderados por Sérgio de Souza. Marina Amaral cumpriu seu papel. Cabia à filósofa verificar o conteúdo daquela matéria, o que não é função exclusiva do jornalista. Em vez disso, a acadêmica deitou falação (o termo horrível é usado na grei petista para indicar um discurso) entre metalúrgicos. A professora se equilibra entre dogmas e sofismas enunciados "ex cathedra". E os "companheiros" já falam em greve para "defender o governo do golpe". Eles calaram, como bons cúmplices, os absurdos contra os trabalhadores cometidos pelo presidente e ministros.
Uma pergunta: se toda imprensa é golpista, por que a de esquerda seria isenta? Se apenas esta última é confiável, por que os militantes que se dizem teóricos escreveram e escrevem nas demais?
Já que a suspeita ronda o país, afirmo: o petismo, num delírio usual em cabeças autoritárias, deseja abolir a mídia externa ao partido. Mal a coorte angélica chegou ao poder, os seus donos engendraram mordaças para os odiados burgueses, com o Conselho de Jornalismo. O bote falhou, mas era preciso defender o caixa dois santificado. E veio a mentira da conspiração jornalística.
Enxergando e discorrendo sobre fantasmas, Chaui serve ao governo que pratica pequenos golpes (incluindo os de Estado) na compra de parlamentares para conseguir leis favoráveis ao Palácio do Planalto.
Antes de apresentar aparições como realidade e construir um sistema paranóico para agradar os ouvidos do "Iluminador" ("quando Lula fala, o mundo se ilumina e tudo se esclarece"), a especialista na ética espinosana deveria se precaver: "É preciso muita cautela para não admitir como verdadeiro o que é apenas verossímil, porque, admitida uma só proposição falsa, uma infinidade virá a seguir" ("Carta a Hugo Boxel").


Roberto Romano, 59, filósofo, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e autor de, entre outras obras, "Moral e Ciência - A Monstruosidade no Século 18" (ed. Senac/São Paulo).