O GLOBO
A denúncia de que dinheiro de Cuba financiou a campanha do PT em 2002 é verossímil, embora muita coisa não faça sentido na reportagem. Não faz sentido, por exemplo, que o então coordenador da campanha presidencial fosse pedir conselhos a seu ex-assessor Rogério Buratti sobre como internar os milhões de dólares que Cuba estaria colocando à disposição do PT.
Tanto o governo de Cuba quanto Palocci saberiam como colocar esse dinheiro aqui ou em qualquer outro lugar do planeta. O conselho de Buratti — "através de doleiro" — parece ridículo, por óbvio. Também não é crível que o principal representante político de Cuba no país, o diplomata Sérgio Cervantes, fosse entregar pessoalmente esse tipo de dinheiro em seu apartamento em Brasília. E soa um tanto quanto fantasiosa a idéia de dólares de Cuba vindo embalados em caixas de rum e uísque.
Antes de assumir essas denúncias, a oposição tem que escolher: ou o PT tem uma conta em paraísos fiscais através da qual paga no exterior serviços como os de Duda Mendonça, ou, nesses tempos de alta tecnologia, recebe dólares por meios completamente anacrônicos e rocambolescos. Outro problema grave da reportagem de "Veja" é que, mais uma vez, a única pessoa que viu o dinheiro é o falecido Ralf Barquete. As duas testemunhas ouvidas pela revista, e que confirmam a história diretamente, não viram o dinheiro, simplesmente ouviram falar dele.
Mas não há dúvida de que a reportagem está detalhadamente apurada, e nenhuma das ressalvas feitas acima livra o governo e o PT da obrigação de explicarem as denúncias, que são verossímeis e combinam com outras denúncias de dinheiro estrangeiro nas campanhas do PT. Sabe-se, por exemplo, que a campanha de um deputado federal de São Paulo em 2002 foi irrigada pelo dinheiro das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), o que causou até desentendimentos na direção nacional do partido, que fez uma reclamação formal ao comando das Farc. Não para que parassem de enviar dinheiro, mas para que o fizessem através dos canais competentes do PT, e não individualmente para os candidatos que escolhessem.
A contribuição das Farc para a campanha petista de 2002, aliás, já foi motivo de uma investigação da Agência Brasileira de Informações (Abin) no segundo governo de Fernando Henrique Cardoso. Ao contrário do que acusam os petistas, o governo tucano tratou as denúncias com benevolência e arquivou-as, para que não fosse acusado de estar interferindo na campanha presidencial que estava em curso.
O padre Olivério Medina, que está preso por decisão do STF e pode ser extraditado a pedido do governo da Colômbia, de acordo com informes da Abin publicados pela mesma revista "Veja", foi quem teria feito o anúncio, num churrasco em um sítio nos arredores de Brasília, de que as Farc ajudariam com US$ 5 milhões a campanha do PT.
Anteriormente, já havia denúncias de que dinheiro da Líbia de Muamar Khadafi, de organizações internacionais, especialmente alemãs, e da Organização para Libertação da Palestina (OLP) irrigava os cofres petistas. A relação do PT com diversas organizações de esquerda, clandestinas ou não, sempre foi muito próxima, a tal ponto que quando foi eleito o presidente Lula mandou ninguém menos que seu então principal ministro, o chefe da Casa Civil José Dirceu, para uma conversa oficial com o presidente da Colômbia. O recado foi de que as relações do PT com as Farc eram partidárias, e não representavam as posições oficiais do governo que acabara de se eleger.
E há ainda a denúncia da ex-mulher do ex-deputado Valdemar da Costa Neto, de que o governo de Taiwan entregou a ele milhões de dólares para serem repassados para a campanha petista. Convenhamos, são muitos os precedentes históricos e os indícios para que nada disso seja verdade.
O pior para o PT é que até agora todas as denúncias foram sendo comprovadas, uma a uma. Por isso, é risível quando o novo presidente do PT, Ricardo Berzoini, nega a denúncia de uso de dinheiro cubano alegando que a prestação de contas do PT está registrada no Tribunal Superior Eleitoral. Ou quando algum petista diz que o partido não cometeria uma infantilidade como essa, sabendo que a legislação eleitoral proíbe terminantemente esse tipo de financiamento estrangeiro. Ora, a legislação também proíbe o caixa dois, e o próprio presidente da República pronuncia-se oficialmente sobre o assunto para justificar seu partido, alegando que essa é uma prática corriqueira entre os partidos políticos.
Embora todo esse contexto faça com que a luta política fique a cada dia mais acirrada, é pouco provável que o pedido de impeachment do presidente Lula, se vier a ser feito pela oposição com base no financiamento ilegal da campanha, seja mais do que uma arma política para a oposição, sem conseqüências concretas. O uso de caixa dois na campanha não autoriza processo de impeachment, pois se Lula na época da campanha não era presidente, não poderia praticar crime de responsabilidade.
O artigo 86 da Constituição brasileira determina que "o presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções". Assim, qualquer irregularidade cometida durante a campanha só poderá provocar um processo criminal contra Lula depois do fim de seu mandato.
Isto quer dizer que um processo de impeachment só poderá ter validade se baseado nos atos praticados durante o exercício da Presidência. Por exemplo, se ficar provada a participação do presidente Lula na compra de votos de deputados e na distribuição do mensalão. Mas, mesmo que as denúncias de recebimento de dinheiro do estrangeiro não tenham como conseqüência a perda do mandato presidencial, o estrago político já está feito.