quarta-feira, novembro 02, 2005

MIRIAM LEITÃO Gastar ou não?

O GLOBO

O Brasil tem um gasto per capita com saúde cinco vezes maior do que o da China; gasta o dobro do que a Coréia, como proporção do PIB, em ensino superior; gasta mais, como proporção do PIB, do que os Estados Unidos, em previdência. O problema do gasto público é mais complexo do que parece nessa briga maniqueísta em torno do superávit primário.
Ultimamente, tudo o que acontece de ruim é culpa do superávit primário. Ele é de fato uma ferramenta emergencial usada por países, empresas ou pessoas endividadas: economizar para pagar os juros e assim reduzir a dívida. Como qualquer ferramenta emergencial, cria distorções, não é a solução ideal e tem de ser usada apenas por um tempo.


O país fechará seu sétimo ano de superávit primário provavelmente acima da meta. Outros países que reduziram dívida/PIB mantiveram superávits primários por muito mais que sete anos. O problema no Brasil é que os juros são tão altos que, com todo o esforço deste ano, a dívida/PIB parou de cair e está em torno de 51% do PIB.

Em todos esses anos com superávit primário, já se sabe como é a dinâmica. No começo do ano, o governo sempre cumpre mais do que está estabelecido como meta. No final do ano os gastos aumentam e aí o governo consegue atingir a meta, apesar da expansão do fim do ano.

Mas este ano pode terminar acima da meta mesmo. O ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, acha que "se corre o risco" de ficar acima da meta, provavelmente 4,6% do PIB. Muitos ministérios gastaram menos do que foi liberado. O governo garante que o Ministério dos Transportes está gastando este ano R$ 6 bilhões. É esquisito estar com o problema de ter de gastar para tentar não ficar muito acima da meta. Mas é essa a dificuldade que o governo está enfrentando agora. As estradas brasileiras não dão qualquer testemunho de que R$ 6 bilhões estão sendo gastos este ano na recuperação. Mas esse é o valor que está sendo gasto este ano, segundo o governo. As obras darão ao presidente bons motivos para que ele possa subir em palanques e fazer seus discursos; mesmo assim, a situação continuará precária nas estradas brasileiras.

— O Ministério dos Transportes acelerou bem a execução do Orçamento, está com mais de 70% já executados. Estão em andamento a BR-101, a duplicação da Fernão Dias, a rodovia Uberaba-Uberlândia, a Brasília-Goiânia e 200 quilômetros da ferrovia Norte-Sul, entre outras — diz o ministro Paulo Bernardo.

O clima no governo é de gastar mais porque esses gastos são permitidos e estão dentro do estabelecido como meta fiscal. Desde que se começou a perseguir uma meta de superávit primário, tem sido assim: uma economia maior do que a meta no começo do ano e um aumento dos gastos no fim do ano. Entre um momento e outro, muito projeto aprovado e autorizado acaba não sendo feito.

O grande mistério é: por que o gasto público é tão ineficiente? O Brasil gasta dez vezes mais que a Índia e cinco vezes mais que a China per capita na área da saúde, segundo comparações feitas pelo Banco Mundial. Tem indicadores sociais bem melhores do que a Índia, mas tem a mesma mortalidade infantil e a mesma expectativa de vida que a China. O que significa que o gasto de saúde no Brasil é muito mais ineficiente do que o de lá.

Na educação, a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) fez comparações impressionantes, mostrando que, como percentual do PIB, o Brasil gasta mais do que a Coréia em educação superior, com um detalhe: eles têm 82% dos seus jovens na universidade e o Brasil tem 18%. A OCDE também comparou os gastos previdenciários e outro choque: os Estados Unidos têm 16% de população com mais de 60 anos e gasta 6% do PIB com previdência, o Brasil, nos dados usados pela comparação, tem 8% e gasta 11% do PIB.

O problema do gasto público é, como disse, mais complexo do que parece. Os contribuintes não conseguem pagar mais do que já pagam de impostos, mas os gastos correntes têm crescido. O superávit tem sido conseguido em parte pelo aumento da arrecadação permitida pelo crescimento. Normalmente, os gastos que têm aumentado são os que não se pode reduzir depois, como salários e previdência. O ideal seria que o governo pudesse ampliar gastos em algumas frentes: precisa pagar melhores salários em várias áreas onde eles estão de fato defasados ou melhorar a qualidade do serviço prestado à população. Por outro lado, as despesas públicas, quando comparadas às de outros países, são muito ineficientes. O esforço é muito grande e o desempenho, sofrível. Já virou um clichê dizer que o Brasil não precisa gastar mais, mas sim gastar melhor. Pode ser uma frase muito repetida, mas é verdadeira. O atual governo preferiu criar nove universidades a mais, apesar de não conseguir manter as atuais, e apesar de ser bem discutível se expandir o ensino superior gratuito é a prioridade do Brasil na área educacional.

O país está rodando em círculos. Gasta cada vez mais, para um desempenho cada vez pior, e depois reprime gastos necessários para atingir metas fiscais que tentem evitar o crescimento da dívida pública. Quando o que se deveria fazer é reformar o gasto, escolher o gasto mais eficiente para o objetivo que se quer atingir, e cortar onde ele precisa ser cortado. Enquanto não faz isso, o Brasil fica discutindo se tudo é ou não culpa desse tal de superávit primário.