terça-feira, novembro 01, 2005

Miriam Leitão Bush lá

Miriam Leitão

   paneco@oglobo.com.br




O presidente Bush, que desembarca na quinta-feira para uma visita relâmpago, enfrenta em casa o mesmo problema que inferniza o presidente Lula. Uma pesquisa do "Washington Post" mostrou que há três vezes mais americanos convencidos de que o nível de honestidade e ética caiu no atual governo do que os que acham que subiu; 55% também acham que os problemas da semana passada, que levaram ao indiciamento do assessor do vice-presidente, vão se ampliar.
Talvez um americano bem informado se sinta tão perdido no nosso valerioduto como qualquer brasileiro bem informado se perdeu, desde o início, no Plamegate. A primeira dificuldade aqui é entender o caso em si da agente da CIA denunciada por assessores diretos do presidente Bush e do vice-presidente Dick Cheney. A segunda dificuldade é a escala de valores: é considerado um supercrime revelar quem é da CIA, mas não parece ser igualmente condenável mentir sobre os motivos de uma guerra e mandar dois mil americanos para a morte.


Da nossa perspectiva, claro, o que deveria estar sendo investigado implacavelmente é o fato de que Bush disse que havia armas de destruição em massa no Iraque, iniciou uma guerra que ainda não acabou, e as armas nunca foram encontradas.

A ligação entre os dois casos é a seguinte: o embaixador Joseph Wilson foi mandado a Níger para investigar a suspeita de que o Iraque estava comprando urânio para fabricar armas de destruição em massa. Escreveu um relatório concluindo que não havia provas do fato. Bush disse à Nação o oposto: garantiu que havia provas de armas de destruição em massa no Iraque. O embaixador escreveu um artigo no "New York Times" criticando Bush por isso. Aí apareceu na imprensa que a mulher do embaixador, Valerie Plame, era agente secreta da CIA.

Quem disse para a imprensa? Entra em ação o procurador Patrick J. Fitzgerald para descobrir a resposta. Semana passada ele indiciou Lewis Libby, chefe do gabinete de Cheney. Libby se demitiu e pode pegar 30 anos de prisão.

Há uma coisa para explicar antes, para se entender o caso: revelar a identidade de agente da CIA é crime contra a segurança nacional americana. Do nosso ponto de vista, o que deveria ser investigado no gabinete de Cheney são os abundantes indícios de que a Halliburton, empresa em que o vice-presidente trabalhou, foi favorecida em vários contratos federais, principalmente na reconstrução do Iraque. Mas os Estados Unidos submeteram outros países ao seu comando, desestabilizaram governos infiéis e sempre usaram a CIA como ferramenta de obter informação e, assim, melhor controlar o mundo. Portanto: a identidade dos agentes é questão de segurança nacional.

Há outros pontos obscuros no Plamegate. A notícia de que Valerie Plame era agente da CIA foi divulgada pelo jornalista direitista Robert Novak, do "Chicago Sun Times". Nada aconteceu com ele, que deu o "furo". O promotor Fitz-gerald, elogiadíssimo por estar sendo implacável nesse caso, preferiu ir para cima de dois outros jornalistas que fizeram suítes no caso. Um da revista "Time" e outra do "New York Times". Exigiu que eles dissessem a fonte. O do "Time" entregou Karl Rove, principal assessor político do presidente Bush. Mas ele não foi indiciado ainda.

A repórter do "New York Times" Judith Miller disse que não revelaria a fonte. A propósito: ela nunca escreveu que Plame era da CIA, estava apenas investigando. Foi para a cadeia. Ficou lá 85 dias. Mesmo assim, jornalistas americanos não acham que ela é heroína da primeira emenda (a que dá direito aos jornalistas de esconderam suas fontes). Acham que ela é uma figura controversa. Em artigos anteriores ela garantiu que o Iraque tinha armas de destruição em massa, divulgou a versão da Casa Branca. Depois da temporada na prisão, ela foi liberada por sua fonte a dizer o nome. A fonte era Lewis Libby, que foi indiciado. A pressão sobre os jornalistas é um grave precedente.

Perguntas e perguntas. Por que Novak não foi intimado a dizer quem lhe deu a notícia, e sim dois jornalistas, um dos quais nem escrevera ainda sobre o tema? Por que Rove ainda não foi indiciado? Por que a questão principal não é o fato de que Bush leu um relatório dizendo que não havia provas de que Saddam Hussein comprara urânio na África e, mesmo assim, afirmou que havia provas?

As dúvidas do escândalo Clinton eram mais prosaicas, mas mais fáceis de entender. Ele fez ou não sexo com a estagiária? Certos entrementes são sexo ou não? Aquele vestido guardado com DNA presidencial provava o que exatamente? Todas as perguntas eram relevantes porque poderiam comprovar um crime inaceitável: não o chifre em Hillary, mas se o presidente da República mentira ao país ou não.

No caso atual já se começa sabendo que o presidente Bush mentiu. E que o custo da mentira foi muito mais ornamental, digamos, do que a que teria sido dita por Clinton. O mais importante é que esse caso se soma a outras frentes de desgaste que o presidente Bush enfrenta, como o de corrupção eleitoral do seu ex-líder no Congresso, a queda da popularidade, os furacões, a indicação errada para a Suprema Corte, o cansaço americano com a guerra do Iraque.

Se quiserem quebrar o protocolo, Lula e Bush terão muito o que conversar sobre como sair do inferno astral.