domingo, novembro 27, 2005

MERVAL PEREIRA Mentiras políticas

O GLOBO

A radicalização está colocando em xeque alguns dos alicerces da democracia brasileira e contrapondo entre si os poderes da República em uma disputa política que pode ter graves conseqüências para o Estado de Direito. Quando o presidente da República vai a público e garante que o mensalão nunca existiu, ou que o denunciante do mensalão, o deputado Roberto Jefferson, foi cassado exatamente por não tê-lo provado, está fazendo política às custas da verdade. Se essas "mentiras políticas" fossem tratadas com a gravidade que têm em outros países, o presidente Lula poderia ser impedido independentemente de ficar provada sua participação no esquema de corrupção que está sendo apurado pelas CPIs.

Desqualificando comissões parlamentares que ainda estão em andamento, ou, pior, não levando em conta relatórios parciais que já definiram que houve pagamentos periódicos a parlamentares, o presidente Lula atua como um político em vésperas de eleição. Roberto Jefferson foi cassado por ter ferido o decoro parlamentar ao admitir publicamente que recebeu R$ 4 milhões do PT, através do lobista Marcos Valério, e por não ter denunciado à Câmara o mensalão, assim que soube.

Da mesma maneira, quando o Legislativo se insurge contra uma decisão do Supremo Tribunal Federal, e partidos políticos da oposição ameaçam boicotar a aprovação do Orçamento da União enquanto não houver o julgamento da cassação do deputado José Dirceu, estão pressionando Sepúlveda Pertence, o último ministro do Supremo a dar seu voto. Paradoxalmente, as tecnicalidades que estão sendo criticadas hoje por serem teoricamente favoráveis a Dirceu podem acabar funcionando contra ele.

Alguns Ministros acham que o voto do Ministro César Peluso, mandando retirar do relatório final o depoimento da dona do Banco Rural, é mais radical do que a decisão de mandar ouvir novamente as testemunhas de defesa. Caso o Supremo decida pelo voto de Peluso, o julgamento da Dirceu poderá ser realizado na próxima quarta-feira, e ficará demonstrado que os votos dos ministros visavam a garantir o amplo direito de defesa, e não a ajudar o réu a atrasar seu julgamento.

O senador Aloizio Mercadante, líder do PT no Senado, lembra que o pensador francês do século XIX Alex de Tocqueville dizia que o papel do Parlamento é fundamentalmente preservar as garantias e os direitos individuais. "Onde não existia o Estado de Direito, prevaleceu esse tipo de pensamento de que no processo político vale tudo. Essa é uma discussão decisiva para o processo democrático, emblemática tanto para o Estado de Direito democrático quanto para a estrutura do Estado republicano", diz o senador petista.

Para ele, o argumento de que o Orçamento não pode ter a assinatura do José Dirceu por que ele é ilegítimo "é um absurdo. O mandato dele foi dado por 500 mil votos, e só perde a legitimidade se for cassado pelo plenário da Câmara". Neste caso, ressalta Mercadante, "não estamos discutindo o José Dirceu. Estamos discutindo a prerrogativa de um cidadão diante do Estado e das instituições".

Outra situação perigosa para as instituições democráticas é o movimento no Congresso para fazer alterações na Constituição mudando regras eleitorais depois de passado o prazo legal de um ano antes das eleições. "A Constituição, que todos protege, deixa de ser respeitada, e passa a ser olhada como um instrumento capaz de servir a todos na medida em que não há o pudor de modificá-la", diz o deputado Miro Teixeira (PDT-RJ), interpretando uma nota oficial da Ordem dos Advogados do Brasil que se colocou contra a vontade do Congresso fazer mudanças através de emendas constitucionais.

A OAB diz que uma emenda constitucional determinando mudança naquele dispositivo no período entre 30 de setembro de 2005 e 1 de outubro de 2006 (data da realização das próximas eleições) afrontaria a Constituição tanto formal, quanto materialmente, tornando inválido o instrumento da mudança.

Como conseqüência, diz a Ordem dos Advogados, "tal emenda submeteria a Constituição ao Poder Público, e não esse à Constituição, como se tem no Estado Democrático de Direito. Ao invés de se submeter ao Direito, o Estado (pelo órgão competente do Poder Legislativo, competente para fazer processar mudanças constitucionais nos termos da Constituição) estaria submetendo o Direito a ele, aos interesses dos autores da norma modificativa".

É exatamente o que está acontecendo com as duas emendas constitucionais que pretendem mudar as regras da próxima eleição, acabando com a verticalização — que obriga que as alianças partidárias regionais sigam a realizada para a eleição nacional — e reduzindo as cláusulas de barreira de 5% para 2% dos votos nacionais. Os governadores e candidatos a governador querem fazer uma legislação que melhor satisfaça suas eleições, e preferem a quebra da verticalização.

PT e PSDB, por uma índole parlamentarista, são a favor, mas a bancada do PT ficou contra o fim da verticalização e a lista, por que viram que dariam poder a um Delúbio Soares da vida. E o fim da verticalização está sendo defendido pela direção do PT por que quer fazer acordos regionais com o PTB, PP e PL sem aparecer nacionalmente com os "impuros". Com Lula ficariam PSB e PC do B, mas nos Estados viriam o apoio dos "renegados". O PP está agora a favor da verticalização por que quer que o PT assuma a parceria.

São esses interesses diversificados e eleitoreiros que estão presidindo a tentativa de mudanças depois do prazo legal. Mas quase certamente essas mudanças não vingarão, por dificuldades políticas de acordo, ou simplesmente por que serão questionadas no Supremo.