P ode-se tomar com quantos grãos de sal se queira a reportagem da atual edição da revista Veja, segundo a qual, entre agosto e setembro de 2002, dólares de Cuba - US$ 3 milhões, segundo uma fonte, US$ 1,4 milhão, segundo outra - irrigaram a campanha presidencial de Lula clandestinamente, como tinha que ser. A Lei Orgânica dos Partidos Políticos proíbe que recebam dinheiro estrangeiro, a qualquer título e em quaisquer circunstâncias - mesmo que não seja de governos. (Dessa procedência, a coisa se complica.) A transgressão figura em primeiro lugar entre os motivos que podem levar à perda do registro de uma legenda, isto é, à sua cassação. O que não se pode, porém, é decretar de bate-pronto que a denúncia é "fantasiosa" como fez, à própria Veja, o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, e querer mudar de assunto. Palocci, um dos coordenadores da campanha petista, estaria envolvido na suposta operação, quanto mais não seja porque os dois informantes da revista, Rogério Buratti e Vladimir Poleto, trabalharam para ele na prefeitura de Ribeirão Preto. Buratti, o mais notório, revelou ao Ministério Público e à polícia, e confirmou à CPI dos Correios, a existência de um esquema de cobrança de propinas no município, antes e durante a gestão Palocci. Entre aceitar a reportagem pelo seu valor de face e negar, liminarmente, que tenha qualquer fundo de verdade, está o acidentado terreno pelo qual os políticos (e as agências de investigação a que vierem a recorrer) devem transitar em busca dos fatos. O terreno é duplamente acidentado. Primeiro, porque essa busca poderá não chegar a parte alguma. O protagonista central do alegado episódio, Ralf Barquete, outro ex-colaborador de Palocci, faleceu no ano passado. Além disso, sem a materialidade do apontado delito, ficará a palavra de uns (Buratti e Poleto), por verossímeis que possam parecer os seus depoimentos, contra a palavra de outros (o ministro, dirigentes do PT e, eventualmente, o próprio presidente da República). Em segundo lugar, porque a história entra em cena quando as relações entre governo e oposição estão no seu pior momento desde que irrompeu a crise da corrupção, há quase meio ano. O que define essencialmente essa piora é o fim do tabu do impeachment: na semana passada, no crescendo de ações e reações recíprocas, pela primeira vez a hipótese de abertura de processo contra o presidente da República por crime de responsabilidade passou a fazer parte da retórica estridente de um confronto cujo horizonte é, sem dúvida, a sucessão presidencial de 2006. Lula também se considerou atingido pela decisão da CPI dos Bingos de promover a acareação entre o seu chefe de gabinete e secretário particular Gilberto Carvalho com os irmãos do assassinado prefeito de Santo André, Celso Daniel. Já os tucanos se sentiram afrontados pela acusação de que o seu presidente, Eduardo Azeredo, usou caixa 2 na sua campanha reeleitoral ao governo de Minas, em 1998, e pela revelação de que recebeu R$ 700 mil de Marcos Valério para quitar uma dívida. O senador Azeredo renunciou à direção do PSDB. O PT ameaça abrir processo contra ele por quebra de decoro parlamentar. Dias atrás, os líderes oposicionistas voltaram a falar em impeachment depois que o presidente do PL, Waldemar da Costa Neto, que renunciou ao mandato de deputado para não ser cassado, disse à CPI dos Bingos que pagou dívidas da campanha de Lula com dinheiro de Marcos Valério. E o tom mais belicoso que era de prever do programa de propaganda do PT representou outra volta no parafuso: da mesma forma como vem fazendo o presidente-candidato, o partido atacou duramente o governo Fernando Henrique - aliás, com despudorada manipulação de estatísticas. Por fim, o aparecimento de cartazes em Brasília mostrando o presidente do PFL, Jorge Bornhausen, dentro de um uniforme nazista, numa montagem cujo autor intelectual teria sido o sindicalista Luiz Marinho, ministro do Trabalho, foi apenas o prelúdio para a escalada verbal do presidente do PSDB a tomar posse este mês, senador Tasso Jereissati, e do presidente recém-empossado do PT, ex-ministro Ricardo Berzoini. Pedir a políticos que falem menos e pensem mais, antes de falar, nas conseqüências do que pretendem dizer é decerto pedir muito. Mas é o que está na ordem do dia: o caso dos dólares cubanos precisa ser investigado com objetividade, competência - e sem declarações carbonárias.
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