domingo, novembro 27, 2005

Daniel Piza O homem-bigode

OESP


E-mail: dpiza@estado.com.br Site: www.danielpiza.com.br

Quando nasceu, Zé Ney parecia ser um menino comum de família rica do chamado "interior profundo" do Brasil, exceto por um detalhe: seu proeminente buço. Todas as visitas reparavam na bizarra penugem, mas nada diziam. Na escola, porém, não foram poucas as vezes em que sua mãe precisou ir apanhá-lo, ele aos prantos, depois da saraivada de gozações dos outros meninos. Garoto precoce e tinhoso, aos 11 anos Zé Ney já tinha um vasto bigode, vestia terno como se fosse farda e já tomara uma decisão: seria um ilustre estadista e escritor, uma espécie de Cícero dos trópicos, e tão poderoso que seus amigos iriam lhe pedir perdão e emprego – os quais concederia com um sorriso paternal e maroto.

Como se levava muito a sério, logo foi cercado por um séquito de bajuladores e parentes que aplaudiam tudo que dizia e fazia. E ele mais dizia do que fazia: falava sem parar, discursava, escrevia artigos cheios de adjetivos para os jornais, dava aulas e ordens. Tudo de um jeito calmo, cordial, com doses medidas de sorriso em meio à seriedade. Distribuía mimos aos muitos empregados e seus filhos – um resto da compota de doces, uma trouxa de roupas usadas – e prometia que, quando chegasse "ao topo", pagaria salários decentes para eles. Tinha um repertório especial de deferências para as mulheres e sempre as citava em primeiro lugar: "Senhoras e senhores..." Perto delas, ninguém podia repetir seu apelido de infância, "escovão", que elas logo o defendiam.

Quando discordava de alguém, Zé Ney jamais o criticava: fazia uma piada, dava um tapa em suas costas e descontraía o ambiente. "A alegria é a maior contribuição do Brasil para a cultura mundial", dizia sempre. Para se vingar do divergente, mais tarde procurava um amigo seu e, com a lábia que emanava entre os fios de seu bigode, trocava a promessa de um emprego pela inexplicada interrupção de convites ao outro. Logo passou a ser conhecido também na capital, onde circulava com desenvoltura entre os poderosos. Começou a comprar terras, usinas, tudo que simbolizasse poder. O bigode era, agora, seu maior aliado: escondia a fragilidade de sua alma, disfarçava o vazio de suas idéias. Foi também nessa época que descobriu o paletó atravessado de três botões, para lhe dar aparência ainda mais respeitável.

Assim Zé Ney conseguiu ser suplente de deputado federal, depois deputado e depois governador biônico de seu Estado, pois se dava às maravilhas com o regime militar. Pouco depois, não tendo publicado mais que meia dúzia de poemas e contos, chegou à Academia Politiqueira de Letras. Foi o dia mais importante de sua vida. O bigode, que pintava e penteava com esmero, não poderia ter melhor acompanhamento do que o fardão; Zé Ney se sentia uma espécie de Napoleão, felizmente sem precisar ir ao campo de batalha. Nem quando, mais tarde, comprou uma ilha só para sua família – uma ilha que era a demonstração mais cabal de que a natureza do Brasil é a mais exuberante que existe – a sensação de glória foi comparável.

Havia um problema: precisava escrever algum romance. Pensou: quem faz sucesso na literatura brasileira? Era, então, Jorge Amado. Pois então decidiu que iria imitar o escritor baiano, adaptar seu estilo – com suas exaltações do erotismo mestiço – ao cenário de sua terra natal. Os intelectuais franceses iriam apreciar muito. E assim fez. Como então era um senador da República, sempre na situação, teve boas vendas. Mas glória pouca é bobagem. Zé Ney teria em seguida a chance de chegar ao cargo supremo da nação. "A sorte ajuda a quem se ajuda", repetia, e os arranjos da política e do destino o colocaram lá.

Não foi tão bom como entrar na APL; fracassos econômicos, políticos e sociais se produziram, e alguns jornalistas ainda tinham a desfaçatez de tratá-lo como aqueles colegas de escola do distante passado. Mas o que importava era estar na História – com H maiúsculo – sem muito esforço, exceto uma distorção de fatos aqui, uma manipulação de dados ali. "Quem tem amigos tem tudo." Dali por diante era só administrar a reputação. De vez em quando, conseguia ter uma idéia, como a de voltar ao Parlamento por outra província. Escreveu mais dois ou três livros, tratou da carreira dos filhos, criou uma Fundação com seu nome para projetos sociais, festas de casamento e restaurantes. Passou por alguns problemas, como o que interrompeu a ascensão política de sua filha. Mas, quem quer que fosse o presidente, Zé Ney estava ali para dar apoio.

De repente, depois de tantos sonhos realizados, recebeu o maior dos choques: perdeu a igreja onde mandara construir seu mausoléu, reincorporada ao patrimônio público. Chorou, disparou telefonemas, deu entrevistas para sua cadeia de jornais, rádios e TVs. Nada. Coçou o bigode – velho tique, que o acompanhara desde menino –, coçou tanto que a tinta preta lhe sujou os dedos. O que estava acontecendo? Como ele, depois de tantos triunfos, ficaria sem o triunfo maior? Um imortal não pode ser enterrado como uma pessoa comum! Foi então que julgou ouvir as risadinhas maliciosas dos amigos de infância, incomodando sua consciência como uma nuvem de marimbondos.

RODAPÉ (1)

Quando adolescente, minha profaníssima trindade do jornalismo era Paulo Francis, Millôr Fernandes e Ivan Lessa. Assim como os três mosqueteiros eram quatro, minha trindade eram cinco: tinha também Sérgio Augusto e Ruy Castro. De todos, o menos publicado em livro é justamente aquele que Francis dizia ter a maior imaginação, Ivan Lessa, que há 27 anos mora em Londres. Por isso é ótimo ver que suas crônicas para a BBC ganharam outra coletânea, O Luar e a Rainha (Companhia das Letras). Não se trata de um Garotos da Fuzarca, a antologia dos seus tempos de Pasquim, uma folia insuperável de humor negro, lembranças e tiradas. Mas é um livro supimpa, como eles diriam. Lá está o tema dominante de Ivan Lessa, a memória, e lá está sua deliciosa diferença com o Brasil, país que esquece tudo, a ponto de até esquecer Ivan Lessa.

Outro grande cronista de humor, Antônio Maria, também ganhou mais um livro: Seja Feliz e Faça os Outros Felizes (Civilização Brasileira). O tema preferido dele são as mulheres, e eis os versos famosos, paródia de sua própria canção, "Ninguém me ama/ Ninguém me quer/ Ninguém me chama/ de Baudelaire", e aforismos como "Angústia é o resultado da perda de intimidade de um homem consigo mesmo".

RODAPÉ (2)

Dos numerosos herdeiros de Rubem Fonseca na literatura brasileira, Luiz Alfredo Garcia-Roza e Marçal Aquino são os dois mais eficientes. Mas seus novos romances têm alguns recursos que poderiam ser evitados ou melhorados. No de Aquino, Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios, história de uma paixão entre um fotógrafo e uma mulher casada numa cidade do Pará, há de novo um excesso de cenas corriqueiras em cinema e TV e o uso às vezes destoante da citação chique, como naquela em que Lavínia e Cauby "improvisam" um espaguete com vinho, "felizes e estúpidos" ao som do Concerto para piano e Orquestra nº 23 em Lá Maior, K. 488 (sic), de Mozart. O de Garcia-Roza, Berenice Procura, romance entre um menino de rua e uma motorista de táxi, a cena de sexo – que era para ser um ponto alto – não vai além de chavões descritivos como "Berenice se deixou penetrar o mais fundo que jamais sentira" e "nada ficou por ser experimentado". Às vezes, como no diálogo final, eles falam como professores ("...não é o preço que você está preferindo pagar para dar credibilidade à sua história", etc). Ambos os autores podem mais.

POR QUE NÃO ME UFANO

Algo me diz que o governo Lula aproveitou ou incentivou a polêmica entre Dilma Roussef e Antonio Palocci também para ocupar o noticiário com temas econômicos, enquanto José Dirceu manobrava no Supremo para escapar ao processo de cassação. De qualquer forma, em qualquer uma das frentes as más notícias continuam a dar o tom. O PIB deve ter sido negativo no terceiro trimestre, sinal de que a economia não está nem sustentável nem blindada como se dizia em toda parte; a dívida pública não pára de subir, como o déficit previdenciário, e o desemprego não sai das redondezas dos 10%, enquanto a arrecadação bate recorde a cada mês. A sociedade, enfim, produz mais para pagar mais ao governo. Não há outro resumo possível do nosso drama.