quinta-feira, novembro 24, 2005

Corrupção, a real e a virtual Gilberto de Mello Kujawski

OESP


 

A corrupção propalada em nosso país assume dimensões de fim do mundo. É fácil pensar que "está tudo perdido". Em nosso artigo de hoje o propósito é demonstrar duas coisas. A primeira é que a corrupção é ainda muito maior do que parece: a corrupção real, visível, não passa da pontinha do iceberg da corrupção virtual, difusa nas entranhas da própria sociedade. Depois desse panorama assustador, vem a ressalva: não, nem tudo está perdido; temos ainda anticorpos que estão agindo eficazmente contra a disseminação geral e irrestrita do vírus da corrupção, CPIs, Ministério Público, a imprensa, por exemplo, além de um partido sem registro, mas numeroso e respeitável, o PI, Partido dos Indignados.

A série de escândalos que estouram diariamente na mídia forma um novelão do qual se ignoram o enredo completo e os verdadeiros personagens. Só se desconfia da identidade do autor. No entanto, seria um equívoco bastante ingênuo e provinciano julgar que só os altos escalões de um governo e de certo partido seriam réus de ações de corrupção em nosso contexto nacional. Nem a oposição está a salvo de suspeita, nem as empresas, grupos privados, e até algumas igrejas, com seus "bispos" ávidos de dólares e poder.

Consta que Josef Stalin dizia, sinistramente, que a morte de uma só pessoa constitui uma tragédia, mas a morte de milhares de pessoas é uma estatística. O dito staliniano pode aplicar-se à corrupção. Um caso, dois ou três casos de suborno mediante propina se configuram como ilícitos penais e graves infrações éticas. Diversamente, uma avalanche de corrupções afetando o poder público, os partidos, os particulares, sem reservas nem limites, confere à corrupção outro estatuto. Não é este ou aquele indivíduo, este ou aquele partido ou grupo econômico, isolados, que desafiam os princípios da lei e da moralidade; é o tecido social que está ameaçado de decomposição. A corrupção deixa de ser simples ilícito penal ou mera infração moral para revelar-se um desvio coletivo do comportamento, supostamente inocente, a ponto de aqueles procedimentos condenáveis serem absolvidos tacitamente sob a alegação de que "todos fazem assim", como se viu agora com a leniência do PT em relação ao caixa 2. A legalidade e a moralidade ficam reduzidas a uma questão estatística: se um ou dois sujeitos infringem a lei, trata-se de crime ou imoralidade; se centenas de indivíduos fazem o mesmo, trata-se de "recursos não contabilizados".

A corrupção transitou do direito penal e da ética para a sociologia do comportamento. Cresce dia a dia sua aceitação como "fato normal". E quem não a aceita assim passa ser discriminado e rejeitado pelo grupo.

Uma epidemia se propaga em razão das más condições de higiene e salubridade do meio ambiente. Da mesma forma, a corrupção em escala epidêmica só se explica pela deterioração dos padrões de vida coletiva, abrindo as portas para a livre contaminação. Na base da vida coletiva existem certos dispositivos responsáveis pela coesão das pessoas nisso que se chama a comunidade. Estes dispositivos são as formas sociais, que atuam como o cimento que une as pessoas físicas e jurídicas no corpo social e garantem sua permanência. No caso dos escândalos de corrupção investigados pelas CPIs e denunciados com veemência pela imprensa, a autoria não se restringe individualmente aos implicados, nem a um partido ou um governo em particular. Claro que estes foram co-autores e devem ser investigados e punidos. Mas o processo de corrupção vem mais de baixo, a saber, da dissolução das formas sociais, típica não só de nosso país, mas do nosso tempo e de todos os países. A corrupção nos altos escalões do poder germina na base das instituições, na sociedade doente, que passa por um processo de autofagia, dividida consigo mesma em grupos inimigos, que ameaçam transformá-la no seu oposto, a "dissociedade", o contrário de uma sociedade, caracterizada pela comunidade básica de princípios, valores, usos e vigências.

As formas sociais compreendem, em primeiro lugar, as formas da vida privada, porque a vida é, primariamente, vida privada e só em segundo lugar, vida pública. O núcleo da vida privada consiste na família. E a família está em crise, perdeu a autoridade como matriz originária da formação e do caráter dos filhos. E perdeu, também, o papel de instância protetora contra as intempéries da existência, na qual sempre seus membros buscavam refúgio. A família é cada vez mais convenção e cada vez menos uma instituição. Os jovens afastam-se dela, amparando-se nos grupinhos de amigos ou companheiros, em movimento de contestação dos valores paternos e sua alegada "caretice". A conseqüência é que o jovem cresce na intempérie, em regime de promiscuidade com o que há de pior fora de casa, a errância sem destino, a irresponsabilidade pessoal, a droga e a criminalidade.

Outras formas da vida privada, a escola e a igreja, também atravessam crise dilacerante e pouco servem de ajuda ou incentivo para a formação da identidade civil da juventude.

A cidadania constitui a forma básica da vida pública, o direito à participação na vida política. Pois a cidadania está gravemente truncada devido à promiscuidade da coisa pública (res publica) com os interesses mais estranhos ao interesse comum, interesses de ordem partidária, econômica, militar e até religiosa. A cidadania já não se leva a sério, porquanto o cidadão não se vê refletido em seus representantes. Esgarça-se o vínculo entre o cidadão e a política, e a descrença na política e nos políticos domina a opinião pública.

O homem, quando despido das formas sociais que o integram na comunidade, volta ao "estado de natureza", dominado por um individualismo bestial comandado pelo imperativo pragmático do sucesso a qualquer preço. Põe-se a serviço da corrupção em todas as variantes possíveis, transformado naquele "perverso polimorfo" de que falava Freud.

Gilberto de Mello Kujawski, jornalista e escritor, publicou A Identidade Nacional e Outros Ensaios (Funpec).