terça-feira, novembro 29, 2005

ALI KAMEL Não ao Estatuto Racial

O GLOBO


Quando terminei de ler todo o projeto, a minha sensação era de que, se aprovado, o Estatuto da Igualdade Racial deixará para trás, de uma vez por todas, o Brasil que conhecemos e criará um outro país, cindido racialmente, em que a noção de raça, base de todo racismo, estará no centro de tudo, quando deveria estar definitivamente enterrada. O projeto já foi aprovado no Senado e, agora, está para ser votado na Câmara. Se eu disser a alguém que se trata de uma lei sul-africana do tempo do apartheid , e pedir que leia alguns de seus artigos, certamente não haverá nenhum estranhamento.

"O quesito raça/cor, de acordo com a autoclassificação, e o quesito gênero serão obrigatoriamente introduzidos e coletados em todos os documentos em uso no Sistema Único de Saúde", diz o artigo 12, arrolando os documentos: cartões de identificação do SUS, prontuários médicos, formulários de resultado de exames laboratoriais, inquéritos epidemiológicos, pesquisas básicas, aplicadas e operacionais etc. O artigo 17 determina o mesmo para os documentos da Seguridade Social, e o 18 determina que as certidões de nascimento contenham também a cor do bebê, o que não acontece hoje. Da mesma forma, os empregadores públicos e privados terão de incluir o quesito cor em todos os registros de seus funcionários, tais como formulários de admissão e demissão no emprego e acidentes de trabalho.

Como conciliar a autodeclaração com as regras acima? O paciente chega inconsciente ao hospital e morre: quem dirá se ele é branco, preto ou pardo? O filho nasce e o pai diz que ele é branco: e se, quando crescer, o filho se olhar no espelho e chegar à conclusão de que é negro?

Como se vê, definitivamente, os brasileiros seremos definidos pela "raça", um conceito que a ciência repudia. Será o fim do país que se orgulhava de sua miscigenação, que sabia que ninguém é inteiramente branco ou inteiramente preto, que tinha orgulho de seu largo gradiente de cores. Seremos transformados num país bicolor, num país não de brasileiros simplesmente, mas de brasileiros negros, de um lado, e brasileiros brancos, do outro. E a suposição será a de que os dois lados não se entendem.

Os disparates do estatuto são muitos. Contra toda evidência científica, o projeto parte do pressuposto de que existem doenças raciais. Assim, dispõe o artigo 14: "O Poder Executivo incentivará a pesquisa sobre doenças prevalentes na população afro-brasileira, bem como desenvolverá programas de educação e saúde e campanhas públicas que promovam a sua prevenção e adequado tratamento." Ou seja, o estatuto acredita que haja "doenças de negro" (embora, a despeito de ser um "estatuto da igualdade racial", não faça menção a "doenças de branco"). Isso é um absurdo, do ponto de vista da ciência. De fato, há doenças cuja origem é genética, mas elas não estão relacionadas à cor do indivíduo. Em sociedades segregadas, como a americana ou a sul-africana, em que os grupos populacionais não se misturam, é provável que haja prevalência de certas doenças em determinados segmentos. Mas isso nada tem a ver com a cor.

O problema da anemia falciforme em negros, por exemplo: hoje se sabe que quem tem o gene dessa doença é mais resistente à malária. Por essa razão, nas regiões africanas onde a malária é mais presente, há mais pessoas com anemia falciforme, algo explicado pela Teoria da Evolução, de Darwin. Mas, nas outras regiões da África em que a malária não é um grave problema, a anemia falciforme não existe. Os negros com ancestrais nas regiões onde a malária é endêmica têm mais chances de ter a anemia falciforme, mas os negros de outras áreas, não. Assim, não se pode dizer que a doença seja prevalente entre negros. Além disso, um indivíduo pode ser totalmente branco e ter o gene da anemia falciforme, desde que tenha algum ancestral negro também portador do gene. Num país como o Brasil, em que a mistura é total, nenhum controle "racial" de doenças faz sentido, porque brancos e negros, tendo ancestrais comuns, dividem o mesmo patrimônio e a mesma carga genética. Apesar disso, o estatuto dedica quase uma página inteira à anemia falciforme em negros.

Há de tudo no estatuto: a permissão para que tradicionais mestres em capoeira dêem aulas em escolas públicas e privadas, a obrigatoriedade do ensino da História Geral da África e do Negro no Brasil para alunos das redes oficial e privada e a permissão para que praticantes das religiões "africanas e afro-indígenas" ausentem-se do trabalho para realização de obrigações litúrgicas próprias de suas religiões, "podendo" tais ausências serem compensadas posteriormente. Não fica claro se brancos terão também direito a dar aulas de capoeira ou a fazer suas obrigações da Umbanda e do Candomblé durante o expediente (já que, no Brasil, são também assíduos freqüentadores de terreiros). Mas o que mais preocupa no estatuto é a cizânia que pode causar no mercado de trabalho. Diz o artigo 62: "Os governos federal, estaduais e municipais ficam autorizados (...) a realizar contratação preferencial de afro-brasileiros no setor público e a estimular a adoção de medidas similares pelas empresas privadas." Uma das medidas previstas é a adoção de uma cota inicial de 20% para o preenchimento de todos os cargos DAS (vagas que não exigem concurso público); esta cota será ampliada até que se atinja a correspondência com a "estrutura da distribuição racial nacional". E de que modo as empresas privadas serão estimuladas a contratar preferencialmente negros? Entre outras coisas, pela exigência de que empresas fornecedoras de bens e serviços ao setor público adotem programas de igualdade racial. Em outras palavras: que contratem preferencialmente negros. Num país em que ninguém sabe ao certo quem é branco e quem é negro, a medida é de difícil aplicação. Mas o pior é que ela poderá ser um estímulo para o surgimento de rancores em grupos e pessoas que se sintam preteridas, algo que desconhecemos até aqui.

Sim, claro, o estatuto estabelece também a obrigatoriedade de cotas raciais para o ingresso de estudantes no ensino superior. E acrescenta cotas para programas de TV, filmes e anúncios publicitários.

É um outro Brasil que este estatuto quer fundar. O que os brasileiros precisam decidir é se desejam este novo Brasil. Meu palpite é que se o tema fosse posto em referendo, com campanhas esclarecedoras de ambas as partes, o resultado mostraria que ainda sonhamos com o ideal de uma nação orgulhosa de sua miscigenação, em que raça e cor não importam. Mas não defendo um referendo. Nossos representantes no Congresso têm a legitimidade para decidir. E espero que tenham a coragem de agir a despeito de grupos de pressão, por mais barulhentos que eles sejam.