segunda-feira, outubro 24, 2005

Versões, fantasias e êxtase1

OESP
Versões, fantasias e êxtase

Gaudêncio Torquato

Sobre a mesa de trabalho, um versinho inspirava Chagas Freitas, que governou a Guanabara e, anos depois, o Rio de Janeiro: "Comigo não há nada, não há nem pode haver. Se houver, não surte efeito e, se surtir, não tem valor." A filosofia dessa raposa política, que também foi fundador do jornal O Dia, está sendo adquirida, a prestações, pelo presidente da República, que usa a primeira parte da boutade chaguiana ao dizer que os petistas não são corruptos pelo fato de terem usado o caixa 2 nem portam doença contagiosa que impeça a convivência com eles. Ao dar endosso ético e passar atestado de saúde a companheiros envolvidos com o mensalão, Lula se imbui da onisciência de um deus todo-poderoso, condição que faz questão de exibir aqui e alhures, jamais dando a mão à palmatória ou se desculpando por gafes e impropriedades - como a cometida na Europa quando garantiu que a febre aftosa fora debelada, no mesmo instante em que novos focos da doença apareciam. E mais: sua preocupação, agora, não é com febre aftosa, mas com a "febre aviária", doença que a farmacologia lulista introduz no lugar da gripe dos galináceos.

Só mesmo o presidente não percebe que seu lastro de modéstia, um tanto escasso, está corroendo os juros do carisma que ainda detém. Sua maneira de enfrentar a crise funciona como motor de propulsão de eventos negativos, deixando distante a hipótese de elevar o seu vetor de força para o nível do início do mandato. Basta conferir a relação com o próprio PT. Há um estado de evidente conflito. As intenções de um e outro caminham em paralelo. Os petistas ameaçados de cassação, com exceção do ex-líder Paulo Rocha, ao não aceitarem o conselho presidencial para uma renúncia coletiva, esticam o ciclo de tensão e pressão para março/abril do próximo ano, deixando Lula refém das circunstâncias. É evidente que, nesta condição, o candidato estará mais vulnerável, iniciando a campanha em curva, e não numa reta.

A esfera política, portanto, continuará agitada, sendo pouco provável que, no meio de um processo investigatório que tende a abrir novos flancos, o governo consiga reorganizar as bases e impor vitórias fáceis no Congresso. Na frente econômica, apesar do exagerado otimismo presidencial, o affaire da febre aftosa ocasionará certo impacto (desemprego, queda de receita de exportações), somando-se ao rolo compressor do arco político sobre o ministro Palocci - previsível em ano eleitoral - e ao clima de instabilidade dos mercados internacionais. Na área social, o governo estufará o programa Bolsa-Família, na perspectiva de forrar o colchão dos pobres e desenvolver uma estratégia centrípeta de envolvimento (das margens para o centro). Nas searas centrais da sociedade, porém, o governo não terá frutos a colher. E nem a propaganda cosmetizada do PT, embalada para engabelar as massas, conseguirá reduzir a indignação das classes médias.

Ademais, a amostragem de feitos será canibalizada pela fumaça da crise. Quando dois discursos se opõem, parcela de ambos se desmancha no ar e se perde. Além disso, a posição de candidato favorito não é confortável para Lula. Cria expectativa. Qualquer queda na pontuação de intenção de voto, por menor que seja, causará mais impacto que a baixa de um adversário, por significar tendência de declínio. Por último, a antecipação de campanha é fator de desgaste. Ora, o presidente já entrou no jogo da reeleição. O seu encontro com os líderes da esquerda italiana teve tom de palanque. Recebido com salamaleques, Luiz Inácio foi incentivado por Romano Prodi a formar uma grande aliança de centro-esquerda, nos moldes que o italiano criou para ganhar a eleição primária e se tornar o candidato da oposição em 2006 contra o direitista Silvio Berlusconi. Lula e seu assessor Luiz Dulci se extasiaram, não dando bola à evidência de que tucanos (mesmo com o apoio do PFL, à direita) e peemedebistas também se acham inseridos no espaço de centro-esquerda. Ou o Brasil tem centro de mais e esquerda de menos ou vice-versa.

Fruindo a fantasia italiana, Lula permitiu-se, mais uma vez, arvorar-se em ícone da ética. Eis como se despediu dos italianos: "Temos que dar exemplo de severidade, de honestidade e de ética!" Só mesmo a psicologia para explicar. De tanto repetir a mesma cena, o ator acaba acreditando piamente na alegoria. Emerge, reveladora, a segunda parte do preceito do velho Chagas Freitas: se houver algo contra mim, não surte efeito, e se surtir, não tem valor. O presidente e sua sociedade de corte acreditam nisso. Cegos, não notam o estrago feito pelo bando que dominava o PT. Só enxergam as nuvens emotivas que pairam sobre partes do território. Desprezam os anéis racionais que circundam os grupamentos médios. Esses anéis deram um recado forte, ao inflarem o balão do "não" no referendo de ontem. Se a campanha do "sim" procurou atingir o coração das massas, a campanha do "não" sensibilizou as cabeças de setores médios e organizados. O referendo, instrumento de nossa democracia participativa, é bastante revelador. Mostra que a sociedade é capaz de reagir e impor sua vontade, mesmo sufocada por gigantesca tuba de ressonância. Menos que tiroteio entre pobres e ricos, como se procurou passar, o referendo foi uma disputa entre o voto emotivo e o voto racional. Com respingos na imagem do governo. O País está deixando de ser um imenso curral.

Essa é a razão por que não se deve apostar na boa-fé dos brasileiros para perdoar o passado. Um Delúbio Soares, como PC Farias, é uma identidade para sempre. Ao contrário do que pensa, em três ou quatro anos "tudo será esclarecido", sim, mas não acabará virando "piada de salão". Ele não será perdoado. Bem que poderia passar esse tempo copiando a máxima atribuída a Ulysses Guimarães: "Uma pessoa 99% honesta é 100% desonesta, porque não existe honestidade parcial." Lição que também precisa ser apreendida pelo nosso presidente.