terça-feira, outubro 18, 2005

Luiz Garcia Herança para os sobreviventes

o globo


Se a venda de armas e munição for proibida no Brasil, a violência personificada em traficantes de drogas e assaltantes de residências sofrerá um golpe severo, quase fatal.


Verdade ou mentira?

Obviamente, um grosseiro exagero, mas esse parecia ser — ou deixaram que parecesse — o grande objetivo do referendo do dia 23. Não admira o que dizem as últimas pesquisas.

Trabalhemos com a verdade.

O crime organizado será apenas marginalmente atingido pelo desarmamento, uma vez que os bandidões não compram armas e munição em lojas ou na internet. As vantagens óbvias do estatuto são de outra natureza. Permanecem de pé. A saber:

1. Pessoas com direito óbvio a armas não serão prejudicadas. Como fazendeiros e moradores em áreas remotas, sem acesso fácil e imediato a socorro do Estado. Isso, a propósito, derruba o argumento idiota de que as pesadas restrições ao comércio de armas foram imaginadas para ajudar invasões de propriedades rurais. (Leiam o artigo oitavo, que inclui uma série de outras razoáveis exceções.)

2. Com muito menos revólveres nas mesinhas de cabeceira, o número de crimes passionais diminuirá substancialmente.

3. Praticamente acabarão os acidentes causados pelo manuseio de armas por crianças e adolescentes. Só isso já vale um estatuto.

4. Em sua maioria, as brigas de vizinhos e discussões no trânsito deixarão de ter finais sangrentos. É uma conseqüência que dispensa elaboração.

Não basta? E o que dizer do fascínio de adolescentes por armas, como candidamente confessado por Cora Rónai outro dia? É assustador que jovens altamente inteligentes consigam se encantar com o poder de intimidação de uma arma de fogo — a ponto de, anos mais tarde, recordarem essa aberração com carinhoso enlevo. Se isso pode acontecer com uma mulher culta e inteligente, imagine com pessoas menos privilegiadas. O último artigo de Cora, semana passada, é assustadora confissão — até mesmo porque a autora não se dá conta do que está revelando.

Voltando ao referendo: poderíamos até esquecer por um momento as conseqüências práticas das severas restrições ao comércio de armas: valeria a pena, por si só, uma declaração coletiva de repúdio à violência. Faria bem à alma, tenham certeza. E teria conseqüências sobre nossos filhos. Que exemplo queremos dar a eles? Que exemplo temos a obrigação moral de lhes deixar?

Por fim, uma historinha antiga. Faz muitos anos, uma amiga esperava o marido, estacionada numa rua de Copacabana, à noitinha. Ela notou que se aproximava um homem de aparência suspeita e tomou a precaução de fechar janelas e trancar portas do carro. O sujeito notou os cuidados e se irritou. Ao passar pelo carro, sacou um revólver, atirou e seguiu em frente. A motorista sobreviveu: uma bala atravessou o seio, sem conseqüências maiores, e outra atingiu a mão. Custou-lhe anos de tratamento, mas não ficaram seqüelas.

Por que o homem atirou? Os únicos dados sobre os quais não há qualquer dúvida eram o fato de que ele tinha a arma e o desequilíbrio mental necessário para usá-la.

O desarmamento não curaria os problemas psicológicos desse pobre coitado. Mas impediria o tiro. Pelo menos aquele tiro.

Podem sair perguntando por aí: é provável que encontrarão alguém com uma história parecida.

Por outro lado, o relato que dificilmente ouvirão é o do chefe de família que tirou o .38 do esconderijo e botou para correr os assaltantes que lhe invadiram o jardim ou o condomínio.

Enfim: proibir o comércio de armas não representará o fim do problema da violência doméstica e nas ruas. Mas será o começo de uma bela herança que podemos deixar para nossos filhos e demais sobreviventes aperfeiçoarem.