O GLOBO
O pedido de demissão do chefe de gabinete do ministro Antonio Palocci, prontamente aceito, traz a marca das incongruências que dominam as ações desse governo politicamente desastrado. Não importam as razões alegadas por Juscelino Dourado, e sim a inconveniência do momento. Pedindo para sair do Ministério da Fazenda logo após seu depoimento na CPI dos Bingos, onde defendeu ardorosamente as ações de seu chefe e negou as acusações contra ele, Dourado coloca em descrédito todas as suas afirmações, e joga novamente o foco das acusações sobre a figura de Palocci.
Não há problema pessoal, ou outra razão qualquer, que justifique uma saída tão abrupta, a não ser que se suspeite que Juscelino Dourado tenha se arrependido de tudo o que disse na CPI. A saída soa como um protesto silencioso de um amigo fiel. Não faz muito sentido, mas seja o que for que determinou sua saída, ela reforça o desmanche da administração de um governo que teve que trocar mais de seis dezenas de figuras-chave na gestão, inclusive uma penca de ministros, numa crise política que atingiu o "núcleo duro" do governo, instalou-se no Palácio do Planalto pelo Gabinete Civil, e está na soleira do gabinete presidencial, blindado até o momento pela falta de disposição da oposição de chegar ao impeachment.
O presidente Lula, por enquanto a salvo de maiores evidências de envolvimento direto com os crimes cometidos, alega inocência, num dia declara-se traído, no outro diz que não há provas das transgressões. Mas está mais do que nunca dependente, não apenas da boa vontade da oposição, mas especialmente da dos aliados no Congresso. Isolado, só comparece a cerimônias intencionalmente preparadas pelos aparelhos sindicais, e já não tem condições políticas nem mesmo de comparecer a um estádio de futebol para assistir a um jogo da seleção brasileira.
Ontem, demonstrando quanto anda a dever a seu mais recente aliado, e o quanto está distanciado do sentimento da opinião pública, condecorou o presidente da Câmara, Severino Cavalcanti, com a mais alta condecoração da diplomacia brasileira, a Grã Cruz de Rio Branco. Um dia depois de Severino ter provocado a rejeição do Congresso e da sociedade com a defesa de uma punição branda para políticos que usaram o caixa dois nas eleições.
A defesa dessa tese absurda, que nada mais é do que uma decorrência do raciocínio do próprio presidente Lula expresso em entrevista concedida em Paris, foi formalmente rejeitada ontem pelo relatório conjunto das CPIs do Mensalão e dos Correios, aprovado por unanimidade. "Tampouco nos parece aceitável o argumento de que, como ocorreu repetição sistemática de um crime -— ainda que seja o mesmo crime, reiteradamente cometido por muitas pessoas — esse comportamento se legitime só pela repetição. Quem admite caixa dois confessa crime eleitoral", afirma o texto do relatório.
O mais importante do relatório é o conceito desenvolvido de que "nada mais compromete a democracia que uma eleição viciada". O governo e seus aliados políticos, que tentaram a todo custo impedir a instalação da CPI para apurar as denúncias de Roberto Jefferson, diante das evidências acabaram sendo superados pela pressão da opinião pública, sem conseguir fazer com que sua maioria contivesse o anseio generalizado de apuração das denúncias.
A admissão do caixa dois foi a maneira encontrada de minimizar a natureza dos crimes cometidos, e mesmo essa tentativa de disseminar o crime eleitoral para que ninguém fosse culpado individualmente, falhou diante da repulsa generalizada: "Caixa dois, segundo o que se prega como nacionalmente admitido e praticado, corresponde a despropósito ético", argumentam os relatores Osmar Serraglio — que se utilizou da expressão de Hanna Arendt para falar da "banalização do mal" que significaria aceitar o caixa dois como prática corriqueira — e Ibrahim Abi-Ackel.
Também na Comissão de Ética da Câmara houve uma tomada de posição simbólica importante: a cassação do mandato do deputado Roberto Jefferson foi aprovada por 14 votos a zero, e o relator teve que recuar da tentativa inicial de alegar que não existe o mensalão. Ele admitiu que a existência do mensalão está sendo investigada pelas CPIs, e elas é que devem se pronunciar a respeito.
Ontem mesmo, os relatores de duas delas — Mensalão e Bingos — afirmaram que a periodicidade dos pagamentos é o que menos interessa."Alguns podem ter sido feitos mês a mês, outros com maior ou menor periodicidade. O fato importante, do qual não podemos nos afastar, é o recebimento de vantagens indevidas", afirma o relatório.
Nos dois casos, a votação pela cassação dos mandatos foi por unanimidade, o que mostra que nem mesmo os petistas das CPIs, que no início tentaram evitar a apuração, tiveram condições políticas de defender seus pares, entre eles o ex-ministro José Dirceu, que o relator Serraglio classificara em entrevista de "o chefe do governo".
Reafirmando o conceito que baseou todo o pedido de cassação, a quebra de decoro parlamentar foi consubstanciada, segundo o relatório, por "desvios de conduta" por parte dos 18 deputados federais citados, "quando menos, pelo grave dano à imagem do Congresso, pelo comprometimento da atividade política, pela lesão à democracia representativa, pelo menoscabo ao Estado de Direito democrático". Nesse conjunto de críticas, há não apenas a defesa de conceitos democráticos fundamentais, mas a reafirmação de que, além do caixa dois, outros crimes foram cometidos na tentativa de interferir no funcionamento do Congresso.