quinta-feira, setembro 29, 2005

EDITORIAL DA FOLHA DE S PAULO DESVIOS SEMÂNTICOS

Foi Delúbio Soares quem lançou a tendência. No depoimento na CPI dos Correios em que assumiu a responsabilidade pelo pagamento a parlamentares da base aliada, qualificou o montante milionário da operação como recursos "não-contabilizados" de campanha. Repudiou o termo caixa dois. A atenuação semântica tinha a intenção de mascarar a gravidade da falcatrua.
O tempo passou e a moda pegou. Todos já falam abertamente de "caixa dois". Mas permanece a intenção de convencer a opinião pública e os deputados que vão decidir se cassam mandatos da tese de que usar o dinheiro para saldar dívidas de campanha seria um crime menos grave, passível de pena mais leve, e/ou da esfera exclusiva do Judiciário.
O ex-ministro José Dirceu -que no Conselho de Ética da Câmara disse estar "cada vez mais convencido" da própria inocência-, no momento em que o foco político se deslocou em direção à sucessão na Casa, propaga uma variante dessa tese. É a idéia de que, limitando o escândalo a um "caixa dois", a fiscalização das irregularidades e a administração das punições ficariam restritas ao âmbito da Justiça -como se o Congresso não tivesse de tratar da questão.
"O PT fez uso de caixa dois, de mercantilização de campanhas. Tudo bem: vamos fiscalizar, a Justiça Eleitoral vai tomar as medidas", afirmou o deputado petista à Folha. O senador tucano e beneficiário do "valerioduto" Eduardo Azeredo -nome cuja persistente ausência das listas de cassáveis é inexplicável- se vale de argumento parecido para tentar barrar um processo político.
Deixando de lado palavras edulcoradas, o PT, em benefício do governo Luiz Inácio Lula da Silva, montou um milionário esquema de distribuição de dinheiro a deputados. Na linguagem crua, esses parlamentares foram comprados com dinheiro vivo, em procedimento que afronta qualquer código de ética parlamentar.
Saber se os comprados receberam ou não em base mensal (o "mensalão"), se retribuíram com votos a favor do governo ou se usaram o dinheiro para quitar dívidas de campanha é irrelevante para a necessidade que se impõe, que é a de cassá-los por quebra de decoro.