sábado, setembro 24, 2005
Augusto Nunes Uma noite no circo-teatro
Como circo, não era lá essas coisas. No curto comboio de trailers viajavam o dono (e apresentador do espetáculo), dois trapezistas, um mágico com sua ajudante, um palhaço, dois ou três funcionários e um homem com cara de galã mexicano – o bigode fino e bem tratado combinava com o topete besuntado de brilhantina. Era artista de teatro, mas eu ainda não sabia.
Não havia naquele circo o hipnótico globo da morte, nem jaulas com feras que faziam tudo o que mandava o domador. Faltavam esses requintes de circo estrangeiro. Mas uma atração adicional compensava as carências: na segunda parte da noitada era apresentada uma peça teatral. Isso fazia a diferença e justificava o nome pendurado sobre a entrada, com letras em néon vermelho: Circo Teatro Irmãos Nogueira.
No começo da década de 60, a trupe andou ancorando em Taquaritinga uma vez por semestre, para temporadas de três semanas. Numa noite de 1961, com pouco mais de 10 anos, fui apresentado aos subúrbios do mundo de Shakespeare: sentado no camarote do prefeito (o prefeito era meu pai), vi de perto um drama da pesada: "Maconha, a Erva Maldita".
O elenco reunia um trio liderado pelo homem com jeito de galã. Ele interpretava o papel do filho viciado, que infernizava a vida do pai (um dos trapezistas) e da mãe (a ajudante do mágico). A procissão de horrores consumia quase integralmente os 30 minutos do enredo. Só cessava na cena do encerramento, quando o protagonista, depois de um ligeiro sumiço por trás da cortina improvisada, reaparecia enfim liberto do vício hediondo. Abraçados, pais e filho festejavam o final feliz.
Durante meia hora, a choradeira e a indignação rolavam nas arquibancadas e no palco-picadeiro. A cada tragada, lá vinham bofetadas na mãe, surras no pai e outras brutalidades, sublinhadas por insultos, ofensas e blasfêmias. Em vão, os espectadores tentavam deter o moço enlouquecido com berros irados e palavrões. Ele continuava a barbarizar em cena até abandonar o maconha. Só então a caipirada na platéia podia dispensar-se de tanto sofrimento.
Achei a coisa meio exagerada. Teatro era aquilo mesmo? Voltei na noite seguinte para concluir a avaliação. Seria apresentada a peça que completava o raquítico repertório: "Vida, Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo". Já vira a história no cinema, contada num filme mudo. Resolvi conferir a versão circense e, sobretudo, acompanhar a performance do protagonista. O filho maluco de "Maconha. A Erva Maldita" também interpretava o filho de Deus.
Soube tarde demais que ele não atuaria naquele sábado. Durante a madrugada, uma gripe medonha derrubara o astro. Ao acordar, balbuciou o recado ao patrão: faltavam-lhe condições físicas para encarnar o papel de Jesus. O patrão já se conformara com o cancelamento do espetáculo quando foi abordado por um exotismo municipal chamado Chicho Laize.
Muito doido, muito falante, muito audacioso, disfarçando a matreirice com a expressão abobalhada, Chicho colecionava façanhas que os adultos da cidade conheciam. Sem profissão definida, vivia de bicos. Naquela temporada, ajudara a erguer a lona e passara a comportar-se como amigo de infância da turma do circo. Todos (inclusive o dono) o tratavam pelo nome. Mas nenhum deles (inclusive o dono) sabia que Chicho era maluco.
Informado da defecção no elenco, procurou o chefe.
– O senhor sabe qual é minha profissão verdadeira? – perguntou-lhe.
O silêncio do homem respondeu que não.
– Artista – revelou Chicho. – Artista de teatro.
– Você sabe fazer Jesus Cristo? – animou-se o patrão.
– Esse papel é o que mais conheço – gabou-se Chicho.
A peça de 20 minutos já começava no calvário. Quando a cortina se abriu, lá estava Chico Laize carregando uma pequena cruz de madeira, dois soldados romanos (os trapezistas) armados de chicote e Maria Madalena (a ajudante do mágico) com uma toalha na mão. Surpresa na platéia. Um soldado xingou Jesus e tascou-lhe a chicotada a centímetros do pé do mártir.
– Cuidado que isso vai me pegar! – advertiu Chicho em tom feroz.
Risadas na platéia.
Mais alguns passos e ouviu-se o pedido.
– Vem cá e me ajuda – disse o protagonista a um dos soldados. – Essa cruz é meio pesada.
O romano ignorou o apelo e mandou ver no chicote.
– Agora me pegou! – berrou Cristo. – Eu tinha avisado, porra!
Gargalhadas na platéia. Aos sussurros, o dono do circo ordenou um intervalo de cinco minutos.
Reabertas as cortinas, as arquibancadas vibraram. Pendurado na cruz, cercado pelo bom ladrão (um dos soldados do primeiro ato) e pelo mau ladrão (o outro soldado), Chicho exibia um cigarro no canto da boca.
– Se és o filho de Deus, livrai-me desta cruz – declamou o bom ladrão.
– Tá difícil – retrucou Jesus. – Mas vou falar com meu pai.
O mau ladrão partiu para a provocação:
– És apenas um mentiroso sem poderes – desdenhou. – Se tens poderes milagrosos, por que não te livras desta cruz?
Chicho irritou-se e rasgou o roteiro.
– Cala a boca, ladrão – ordenou.
Em seguida, com o indicador apontado para o alto, soltou a ameaça:
– Lá em cima eu te acerto.
O acesso de ira fez o cigarro cair-lhe da boca. Alegando risco de incêndio, o dono do circo entrou em cena e avisou que o espetáculo terminara. No dia seguinte, o circo deixou a cidade para nunca mais voltar. Demorei a descobrir que teatro era bem melhor que aquilo.
Temo que os meninos do Brasil, expostos ao novelão das CPIs, imaginem que político é aquilo. Os pais devem explicar-lhes que não é. Ou desligar a TV.