o globo
Estamos cercados de canalhas por todos os lados. Onde bate uma CPI, lá está o canalha nos contemplando do fundo de um arquivo, de dentro de uma cumbuca, reproduzindo-se como as bactérias. Os canalhas são muitos para tão poucos aparelhos punitivos. Chamemo-los de canalhas, nome genérico para corruptos, mentirosos, achacadores da miséria brasileira. Durante quatro séculos, criaram capitanias, casas, igrejas, congressos, labirintos. Matá-los, um a um, é impossível. Os sacripantas, os badamecos, os velhacos, os biltres, os bigorrilhas, os bandalhos, os vendilhões e salafrários renascerão com outros nomes, inventando novas formas de roubar o país. Os canalhas são infinitos; temos de destruir seus formigueiros. Enquanto houver 20 mil cargos de confiança no país, haverá canalhas, enquanto houver estatais haverá canalhas, enquanto houver subsídios a fundo perdido, haverá canalhas. Temos de desinfetar seus ninhos, suas chocadeiras. Não adianta as CPIs punindo meia dúzia. A cada punição, outros nascerão mais fortes, como bactérias resistentes a antigas penicilinas. Não haver pizza pode ser pizza. O mensalão oculta o grande crime da origem do dinheiro, lá em cima, na trama do Planalto.
A canalhogia (a análise da "filha-da-putice") é uma ciência nova. Sem estudá-la não se entende o Brasil de hoje. Ele não é desvio; é a norma. O canalha tem 400 anos: avô ladrão, bisavô negreiro e tataravô degredado. Ele tem raízes, tradição. E é também "pós-moderno", contemporâneo: ele encarna a "realpolitik" do crime, a frieza do Eu, a impávida lógica do egoísmo atual.
No imaginário brasileiro ele tem algo de aventureiro heróico. O canalha conhece o delicioso frisson de saber-se olhado nos restaurantes e bordéis. Homens e mulheres o vêem com gula: "Olha, lá vai o canalha....!", sussurram fascinados por seu cinismo sorridente, os maîtres se arremessando e eles flutuando, orgulhosos de sua ruptura com o bom-mocismo dos corretos, defendendo a tradição endêmica da escrotidão nacional. Há um orgulho perverso no canalha. Hoje em dia, depois da eclosão de Jefferson, o ex-canalha confessional, há o prazer de assumir os erros, quase numa modéstia ao avesso. O canalha tem uma energia tão intensa que cria "sistemas", regras de conduta e obriga os honestos a agirem tortamente para defender o bem público. Sem aliança com canalhas, ninguém governa, sem uma ponta de sordidez não há progresso. O canalha criou o sistema brasileiro que, em troca, recria-o persistentemente: suas mentiras, seus meneios, seus ademanes foram construindo um emaranhado de instituições que dependem da mentira. Se a verdade prevalece, há uma catástrofe. Vejam o estrago que Jefferson fez, quando descobriu o prazer sexual da verdade. Meia dúzia de denúncias agiram como uma bomba. A mentira é necessária para manter as instituições em funcionamento. O Brasil precisa da mentira para viver.
O canalha tem cara de canalha quase sempre — quem parece é. Mas pode ter um rosto tão límpido, tão "honesto", que convence a si mesmo. O canalha não se acha canalha. Quando ele é ameaçado por alguma verdade, vira ator e tem o prazer supremo de mentir. Como é bom negar as obviedades mais sólidas e ver a cara de desespero e impotência de inquisidores. O canalha é mais complexo que o bom. O bom é reto, com princípio e fim; o canalha é um caleidoscópio, uma constelação.
O canalha é mais educativo que o homem de bem. O homem de bem é um mistério solene, oculto sob sua gravidade, com cenho franzido, testa pura. O canalha ensina mais. Temos tido uma grande aula pública de Brasil nos últimos meses, uma psicanálise para o povo, um show de verdades pelo chorrilho de "nãos" e de "negos". Nunca aprendemos tanto de cabeça para baixo. Pelo escrachamento, entendemos a beleza do que poderíamos ser.
O canalha faz sucesso com as mulheres. Elas se perdem diante de seu mistério, elas não conseguem prendê-lo em teias de aranha e o canalha vira um desafio perpétuo, coisa que elas amam em vez do bondoso chato e previsível. A mulher só ama o inconquistável. O canalha desorganiza o universo mental feminino, desatina suas mentes poligonais, o canalha vai além da ilógica da mulher.
O canalha fascina também executivos de bem, porque, por mais que eles se esforcem, competentes, dedicados, sempre estarão carentes de um patrão ingrato. O canalha, não; ele pega e come, ele não espera recompensas, só ele se premia. Ele tem o infinito prazer do plano de ataque, o orgasmo na falcatrua, a delícia da adrenalina na apropriação indébita. O canalha tem o orgulho de suportar a culpa, anestesiá-la, suprema inveja dos neuróticos. O canalha sempre tem uma razão que o absolva e justifique: uma velha vingança, um antigo castigo, uma humilhação infantil. Ele pode roubar verbas de cancerosos e chegar em casa feliz em ver os filhos assistindo a desenho na TV. Muitos canalhas são bons pais — pensam no futuro da família.
O canalha não é o malandro — não confundir. O malandro é romântico, boa praça, o canalha é minimalista, seco, mais para poesia concreta do que para o samba-canção. O canalha tem enfarte; o honesto tem úlcera. O canalha em geral é capitalista, tem gostos burgueses sempre iguais: todos compram lanchas, turbo-carros, amantes, gargalham em churrascarias e passam a entender de vinho. Ultimamente, apareceram os canalhas revolucionários, que roubam em nome do povo. Mas, em geral, o canalha não é de esquerda nem de direita, nem porra nenhuma. Ele é a inércia primitiva do país. Ele não é nem burguesia nem classe alguma; ele é a pasta essencial de que tudo é feito, ele é a História paralítica do Brasil, ele tem a grandeza da vista curta, o encanto dos interesses mesquinhos, a sabedoria das toupeiras, dos porcos e dos roedores. O canalha é a base da nacionalidade.