domingo, agosto 28, 2005

A telecracia brasileiraGaudêncio Torquato

O ESTADO DE S PAULO

 

Entre as pragas que devastam a política, uma é típica da civilização do consumo e abriga o campo do simbolismo. É conhecida como marketing. Origina-se na liturgia do poder, fazendo-se presente na História da humanidade como sistema de camuflagem para lapidar a imagem de governantes, imperadores, reis, príncipes, presidentes, políticos e celebridades. Quinto Túlio já o experimentava em 64 a.C. quando aconselhava o irmão Marco Cícero, famoso tribuno romano candidato ao consulado, a se apresentar como um "homem novo bem preparado para conseguir a adesão entusiasmada do povo". César calculava os gestos públicos. Maquiavel ensinava o Príncipe a divertir o povo com festas e jogos. Luís XIV desfilava nos espetáculos que promovia. Napoleão era um pavão vestido de púrpura quando se coroou para receber a bênção do papa em Notre-Dame. Hitler foi treinado em aulas de declamação para agitar as massas, usou a cruz gamada para propagar o nazismo, podendo-se dizer que o marketing político ganha status profissional sob o comando de Joseph Goebbels, o "marqueteiro" hitlerista.

Pois bem, essa engenharia de encantamento das massas aportou, há quatro décadas, no Brasil para agravar as mazelas de nossa incipiente democracia. Em 60 tivemos as primeiras campanhas marquetizadas. Começou com a mobilização das massas nas ruas. Passou pela adoção de símbolos, cores e cantos até ganhar, hoje, dimensão pirotécnica, quando elege a forma em detrimento de valores. Políticos são transformados em bonecos. Slogans se antecipam a programas (vide Fome Zero). Implanta-se a telecracia - extravagância comandada pela TV -, em que atores canhestros são ensinados a engabelar a fé dos tele-eleitores. Foi assim que ganhamos um Collor de postura apolínea, puxando, às carreiras, um cordão de jornalistas pelos arredores da Casa da Dinda, num cooper diário. Era o arremedo de Alexandre Magno, exibindo vigor, juventude, modernidade.

Não queremos apagar a liturgia que inspirou atitudes de nossos governantes. Alguns desenvolveram símbolos usados com maestria. Kubitschek estampava amplo sorriso para encantar as massas. Jânio, a caspa caindo no terno amarfanhado para se mostrar um homem do povo, brandindo, depois, uma vassoura para varrer a corrupção. Interessa, aqui, demonstrar que a crise exposta nas oitivas das CPIs tem muito que ver com a espetacularização da política feita por profissionais especializados em substituir o conteúdo pela forma, a verdade pela versão, a missão política pela mistificação. Não é de admirar que a representação política, plasmada pela cosmética do marketing, tenha criado imenso vácuo no meio social. Poucos crêem nos políticos.

A transformação da política em extensão do show business tem sido o ofício de uma classe treinada para ampliar os limites do Estado-espetáculo a fim de extrair dele grandes negócios. Os marqueteiros tupiniquins defendem-se dizendo que, nos EUA, a atividade está consolidada. Ocorre que os norte-americanos, mais racionais, se agrupam em torno de dois grandes partidos e não se deixam enganar facilmente. Ademais, lá não se vê o desperdício de tempos eleitorais gratuitos servindo de trampolim para a atividade circense da política. Aqui, o povo paga (com impostos) para ser enganado. E ainda compra gato por lebre. Vejam o que adquirimos. Primeiro, apareceu um sapo barbudo na vitrine, na ironia de Leonel Brizola. Bravo e tosco, foi rejeitado algumas vezes. Até que uma fada madrinha ajudou a operar o milagre. O sapo virou príncipe. Não fossem a altura e a barriga, o anfíbio, que virou modelo, até poderia desfilar no circuito Elizabeth Arden (Paris-Londres-Nova York). Barba aparada, ternos de grife bem cortados, cabelos com reflexos grisalhos, sorriso aberto, charme e ternura: eis o resplandecente "Lulinha paz e amor". Arrebanha 53 milhões de votos. Até a primeira-dama ganha um personal stylist. (Não há nada contra a boa aparência, o bom gosto, o glamour. Mas qual o perfil verdadeiro, o interno ou o externo?)

A varinha de condão foi usada para empetecar atores pelo País afora, embalando candidatos com o lema vivaldino: "Fulano fez, fulano fará melhor." E, como as obras não aparecem, a reversão das expectativas se instala na consciência social, iniciando o desmoronamento dos genais "feitores". Prefeituras e governos, incluindo o federal, estão encostados no monumental paredão de pasteurização construído com a argamassa do marketing. Uma profunda distância se formou entre a imagem dos entes governativos e a realidade social. Essa é a razão por que se impõem urgentes mudanças nas regras do jogo eleitoral de 2006. O debate político há de ocupar o centro das campanhas. A única maneira de resgatar a grandeza do pleito eleitoral é pela via da moralização dos métodos que terão influência sobre a decisão do eleitor.

No mais, não devemos ter esperança de que as coisas melhorem de imediato. A degradação da política é um processo em curso e resulta da antinomia entre o interesse individual e os interesses coletivos. Essa pertinente observação de Maurice Duverger, quando estabelece comparação entre o liberalismo e o socialismo, explica bem a nossa crise. A democracia liberal abriu grandes comportas para a corrupção e o socialismo revolucionário se arrebentou sob os destroços do Muro de Berlim. Estamos à procura de um novo paradigma capaz de resgatar a velha utopia expressa por Aristóteles, em sua Política, a de que o homem, como animal político, deve participar ativamente da vida da polis (cidade) para servir ao bem comum. A polis, entre nós, é um caso de negócio particular. Nas terras cabralinas, o bicho político tem até participado da vida da cidade, mais para colher dela os frutos de suas frondosas árvores que para regá-las com o suor.

Ante essa visão de descalabro, não há como deixar de relembrar o velho conceito de que a política é a arte de produzir monstros.