sábado, agosto 27, 2005

Sergio Bermudes O Rei fraco

NO MÍNIMO
O rádio do táxi reproduz discurso de Lula, num dos seus pronunciamentos, não deu para ouvir de quando: "no meu governo não entra corrupto". Não foi assim. A denúncia do deputado federal Roberto Jefferson à "Folha de S. Paulo" lançou claridade nas águas turvas. Revelou mais que um esquema, um sistema de corrupção, montado para enriquecer donos do poder em cadeia (sem trocadilho), ou como primeira etapa de um plano de continuidade, destinado a conservar os próceres do PT onde estão, nos palácios a que ascenderam depois de campanhas renitentes.

Aquela cruz no céu, divisada por Constantino com o lema "in hoc signo vinces", não fez vitorioso apenas ao imperador. Também, ou principalmente, os cristãos venceram. Saíram das catacumbas, onde cultivavam a pureza do Cristianismo, e entraram nos palácios. Ali se corromperam, sucumbidos às seduções da influência ou do mando, como acontece a quem não é contido, nem por freios morais, nem pela vigilância da autoridade, guardiã daqueles princípios extraídos da Constituição e resumidos com simplicidade por Ulysses Guimarães, no dia da promulgação dela, quando, entre outras sentenças muito judiciosas, ele disse que, no estado democrático de direito implantado pela carta, o dever é "não roubar, não deixar roubar, pôr na cadeia quem roube".

Não se sabe se Lula é corrupto. Sendo ou não sendo, é culpado. Não se trata só daquela culpa incriminadora, suficiente para a punição, como preceitua o art. 29 do Código Penal: "Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida da sua culpabilidade." Cuida-se de culpa mais grave; culpa política, dos administradores incapazes de assegurar a observância do princípio da moralidade, transformado em norma de agir pelo caput do art. 37 da Constituição.

Getúlio Vargas, reconhecidamente austero, em termos pessoais, não cuidou, todavia, de evitar que o seu governo afundasse no "mar de lama" (dele a expressão) sob o Catete. Contou-me o embaixador Walder Sarmanho, cunhado dele, que, um dia, chegou ao palácio presidencial junto com o presidente do Banco do Brasil. Cumprimentaram-se. Sarmanho disse que subiria para ver Dona Darcy, sua irmã. O presidente do banco oficial informou que também subiria, para uma reunião, mas primeiro iria dar um abraço em Gregório Fortunato, o "anjo negro" de Getúlio, o seu prestigioso motorista e guarda-costas, com forte influência em certas deliberações palacianas. O embaixador, então, observou à irmã que um governo no qual o presidente do primeiro banco do país rendia vassalagem a um capanga do presidente da República só poderia estar prestes a cair. Dito e feito. Lula pode ser, pessoalmente, tão honesto quanto Getúlio. Isso, entretanto, não chega para ser presidente porque a sua frouxidão no desempenho do cargo transforma-se em campo fértil aos desmandos, aos abusos, à corrupção.

Da Granja do Torto e dos dois palácios chegam as piores notícias. Verdades, meias verdades, invencionices, elas falam no possível envolvimento de Lula num esquema de fraudes. Cogitam de despesas de sua mulher, pagas, injustificavelmente, por terceiros. Escarnecem do deslumbramento dele com, por assim dizer, as voluptuosidades do poder. Aludem à aquisição de 100 ternos de alfaiate. Lembram as deleitosas viagens no avião, novo em folha, cuja compra, aliás, não se pode criticar, num país continental como o Brasil. O presidente tem necessidade de transporte rápido, seguro, confortável. Circulam fofocas sobre copos e porres, inclusive nos dias de semana. Mas a nota invariável nas notícias é a incompetência de Lula para as tarefas de governo. Segundo se diz, ele é indolente. Não gosta de ler e lê com dificuldade e silabante, como um calouro do alfabeto. Não se concentra nos assuntos. Inseguro e despreparado, não lhe apraz a discussão dos problemas, dispersos e desconcatenados entre ministros e outros servidores do nível mais alto. Tanto é aprazível governar que os governantes, se pudessem, se perpetuariam na função. Isso, contudo, não faz dela um encargo menos espinhoso. O governo impõe dedicação permanente, por meio de trabalho sério e incessante. Juscelino Kubitschek e Fernando Henrique Cardoso deram exemplo disso.

Se Lula for corrupto, deixe a presidência de imediato, ainda que para José Alencar. O vice também deverá partir com ele, se tiver culpa no cartório. Evitar-se-ão os traumas e prejuízos vividos pela nação brasileira, não faz muito, na queda de Collor. Severino e Renan seriam soluções transitórias, tal qual Nelson Jobim, embora este seja talhado para o cargo. Esses três sucessores provisórios governariam somente 30 dias, até a escolha do presidente-tampão pelo Congresso Nacional. Tudo isso prevê o §1º do art. 81 da Constituição.

E se Lula não for corrupto? Que complete o mandato, deixando a tarefa de coordenar o governo, para não dizer governar, a um ministro, ungido uma espécie de primeiro entre os seus pares. Marcio Thomaz Bastos reúne qualificação de sobra para a função. Não será a primeira vez que um chefe de estado, ou de governo, sem apear do cargo, deixa a administração nas mãos de outrem. Senil, o admirável Leão XIII perambulava pelo Vaticano, recitando versos em latim, enquanto o seu secretário de estado cuidava da Igreja. Não terá ocorrido isso, ao menos no fim do pontificado, com o fantástico João Paulo II? A petite-histoire americana conta que, decrépito Woodrow Wilson, a sua mulher o substituiu, de fato, e com mão forte. E que suma o presidente depois do fim do mandato, sem pensar na reeleição, que esticaria um governo irremediavelmente atrofiado.

O povo brasileiro, sem qualquer dúvida ético, não pode continuar a viver a angústia da espera, ou certeza, das notícias sombrias dos jornais da manhã, dos noticiosos da tarde e da noite, numa espécie de síndrome do mau presságio. Se Lula não deixar o governo, ou não mudar de atitude, e prosseguir na malemolência – diga-se logo, na irresponsabilidade – que nem as suas jogadas populistas, nem os clichês dos seus discursos ocos conseguem ocultar, então, virá o "salve-se quem puder"; o caos, na forma de crise do caráter brasileiro, contaminado em todas as camadas pela figura de um arremedo de presidente. Afinal, como está nos Lusíadas (III, 138), é verdade inelutável "que um fraco Rei faz fraca a forte gente."