sábado, agosto 27, 2005

FERNANDO GABEIRA:Um elefante morto na sala




  Vamos supor que um repórter vindo de um país nebuloso e etéreo -a "Neverlândia", digamos-, liberto das amarras do concreto, se dedique apenas às metáforas e às análises, com seus precários meios, para explicar em sua terra a confusão que se passa aqui.
Não interessam tanto à "Neverlândia" os milhões de dólares que voam para as Bahamas. O que são dólares? Por que tanto flutuam?
O repórter esbarrou com o que procurava: palavras. Seu caderno está cheio de anotações sobre a operação esquenta-esfria. Não é notícia em sua terra o caminho do dinheiro dos fundos de pensão para contas bancárias offshore. O que ele tem de explicar é como juntou essas palavras, como uma simples mudança térmica produz tantos recursos. As leis da física seriam as mesmas daqui? O grande problema real desse mundo é precisamente uma operação esquenta-esfria. Mas ela se realiza num paradigma controlável pela ciência da "Neverlândia". Como a operação esquenta-esfria produz fortunas, não seria o caso de enviar especialistas para comprovar que nem todos os planetas se regulam pelas mesmas leis?
No caderno, está também alguma coisa como molho de tomate com ervilha. Ele anotou isso. Um prefeito determinou que a merenda escolar em sua cidade usasse molho de tomate com ervilha. Volta e meia, essas palavras voltavam à sua cabeça, mas não tinha ainda como apresentá-las; faltava um gancho, algo que conferisse ao molho de tomate com ervilha uma atração para os leitores de lá.
De repente, as ervilhas que o intrigavam voltam aos jornais e o repórter sente a excitação de ter algo a informar. Ervilhas vingadoras. Elas rodaram pela sua cabeça, brincaram de esconde-esconde e eis que reaparecem puxando o pé do prefeito.
Seu despacho não poderia apenas tratar de física ou de palavras que se escondem atrás do toco para se vingar. Era preciso mais sofisticação. Num momento desses, é difícil: os intelectuais estão em silêncio. Eles supõem que não entendem mais o mundo e agora vão puní-lo com seu silêncio.
Algumas brechas se abrem. Um cientista político achou a causa da crise que as pessoas presas à matéria relacionam com o desvio de milhões de dólares. A crise estava na virada de uma emissora de televisão. Quando começou a falar de crise, a crise apareceu no céu azul, como reaparecem agora as ervilhas voadoras.
Uma filósofa também quebrou o silêncio. O repórter não sabia como localizá-la, mas buscou nos livros algo que pudesse orientá-lo. Como explicar na "Neverlândia" que uma equipe de governo tenha desviado milhões e milhões? As pessoas aqui também começaram assim, refletiu ele. No principio, homem e mulher viviam no paraíso, imersos na inocência original, até que uma serpente lhes ofereceu a maçã do pecado.
Aí, finalmente, chegou a alguma coisa. O dinheiro foi produzido por uma operação térmica chamada esquenta-esfria. Houve uma crise produzida pela emissora de televisão, e os inocentes, imersos no paraíso, foram seduzidos por um grupo de tucanos que ofereceram a maçã da corrupção. Tucanos? Assim são chamados. O editor certamente vai reclamar: serpente ou tucano?
Nessas horas, quando falam com os editores, os repórteres dizem as piores coisas para si mesmos. Afinal, o que esse cara quer? Num lugar onde se esquenta e esfria, onde as ervilhas viajam pela memória em missão de vingança, é preciso que haja algumas referências para que se avance. Queria ver esse puto explicar o que se passa aqui unicamente com as referências da "Neverlândia". Com a análise do cientista político, ele pode ver, pelo menos, como se constrói a crise pela TV.
O chororô que existe no país, sem o cientista, é absurdo. Com ele, fica mais claro. O presidente chorou na TV e disse que sua mãe nunca perdeu as esperanças. E a TV mostrou, com todas as cores, que ela perdia a esperança. Bingo.
Outro dia, o presidente foi à TV para explicar como se meteu nessa confusão. Olhava para cima -seriam os pássaros?- e disse que foi traído. Não há referências sobre isso. As pesquisas o levaram à história de um cara chamado Tiradentes, que perdeu a cabeça lutando contra o poder colonial. Foi traído e não traiu jamais a independência de Minas Gerais.
Como explicar que um traído não perca a cabeça e os traidores sim, já que a história nos remete ao oposto? Como explicar que tenham comido o fruto do pássaro-serpente e não sejam expulsos do paraíso?
De nada servem os livros. O repórter começa a entender o silêncio dos intelectuais. Seu plano de trabalho ainda está nebuloso e etéreo como o país de onde veio. Alguém lhe disse que mataram o elefante, mas não conseguem tirá-lo da sala. Daria uma boa frase inicial para sua história.
Mas quem matou o elefante? -perguntariam os leitores de "Nervelândia". Há dados indicando que morreu de seus próprios humores internos, de seus ácidos e venenos. Para os leitores de lá, a idéia de morte, gravidade, finitude, é tão vaga. Do imenso corpo do elefante existe um legado: a memória. Por isso talvez chore tanto. Não porque morreu, mas porque se lembra.
O repórter manda seu despacho sob o signo da desconfiança. E se as leis elementares que vislumbrou tiverem sido rompidas? A todo instante, ouve o presidente dizer: nunca na história, jamais em todos os tempos, ninguém mais do que nós.
Só os historiadores do futuro, escavando o Palácio do Outono, vão nos dar as verdadeiras metáforas deste mundo que acaba. Ou começa? Retratos do avião, cartões de crédito, caixas de charuto, gravações, gravatas, muitas gravatas, desenhos para matar tempo nas reuniões oficiais.
Durante muitos anos, a "Neverlândia" mandará seus repórteres a essa terra. O que queriam dizer com tantos dólares na cueca? Por que dormem quando são interrogados? O que diria o velho que dirige a Câmara se completasse suas frases? Por que decidiram comer um pato do palácio? Porque desenham estrela vermelha no jardim (pesquisa Burle Marx)? Por que todos têm um advogado? Como chegaram à formula do protesto a favor? Da indignação temperada?
Eram os deuses astronautas? O repórter lembrou-se com carinho de sua primeira matéria, a longa entrevista com o cozinheiro de Mao Tsé-tung. O editor, no fundo, tem razão: ainda há muito que descobrir.