O GLOBO
Cansado de CPI, enjoado de gângsteres brasileiros, resolvi ir ao cinema ver gângsteres americanos. Entrei no incensado "Sin City" para me distrair. E saí bestificado: é inacreditável que nenhum crítico brasileiro tenha denunciado esse abacaxi sangrento. Ninguém tem coragem de condenar um filme desses por medo de ser chamado de "censor". Há muitos anos, quando estreou no Brasil um filme do Stallone chamado "Cobra", onde punhais recurvos com dentes agudos retalhavam corpos humano, tiros explodiam cabeças, eu dei uma entrevista dizendo que devia ser proibida a importação de lixos como aquele, do mesmo modo que devemos impedir carne estragada.
Só faltaram me matar. Estávamos no alvoroço da abertura democrática. Os libertários me consideraram fascista porque eu protestara contra aquilo. Alguns mais sofisticados falaram no "sagrado direito" de se curtir a violência até como um escape para a dureza do mundo. Pois, hoje digo e repito: filmes como o "Sin City" deviam ter anúncios avisando do sadismo brutal que exibem, que fazem propaganda das delícias da crueldade. Disfarçado de "arte cult", desfilam o glamour dos esquartejamentos, a "beleza" punk-pop da tortura e até do canibalismo. Filmes como esse que estão aí nas telas mostram o aumento progressivo da paranóia americana, mesmo depois do 11 de setembro, deixando patente como a cultura da violência é sua tradição, com suas armas sinistras, aliás, legalizadas há dias pela Suprema Corte. Essa gente está cada dia mais louca, fazendo filmes que mostram que Hiroshima ou Iraque não têm nada de chocante no imaginário americano médio. Sem falar no desejo de autodestruição que os filmes-catástrofe exibem, inspirando até como sabemos o Osama. Que povo esquisito: excita-se com a própria extinção e com o sangue dos outros jorrando. Não há filmes europeus exibindo a destruição de Paris, ou de Madri, com volúpia. É impressionante como uma nação espantosamente competente em ciência e tecnologia, com uma cultura rica e profunda, tenha de pagar um preço alto por sua eficiência obsessiva. Uma civilização tão auto-exigente paga caro para compensar seus desejos inconscientes reprimidos, exatamente como a Europa já está pagando em corpos esfacelados a guerra do Iraque inventada pelo Bush e Blair.
E "Sin City"? Claro que os amantes "cult" dos quadrinhos de Frank Miller me chamarão de "careta", de desinformado sobre a estética pop da "contemporaneidade". Dirão que eu não entendo da beleza da estilização digital, que o filme foi tratado com telecinagens de última geração etc. Essa coisa virtual pode ser importante na tecnologia, O.K., mas como diria o lugar-comum profundo: "É contra a natureza humana." A estética desse filme é um lixo, dirigido por Roberto Rodriguez, um mexicano medíocre que foi ganhar grana em Hollywood, servindo de peão, de ajudante de obras do Tarantino.
Estão criando um formalismo digital que ninguém contesta por falta de referências culturais e teóricas. Não se sabe mais o que é bom ou ruim, como dizia meu avô.
É impressionante ver como os espectadores mudaram nesses anos todos. Aos poucos, estaremos domesticados por convenções de linguagem, de ritmos, pela aceitação de crimes banalizados, pelo amor a uma superficialidade que se diz "profunda", justamente por ser "efêmera", "volátil" na pós-modernidade (argghh...). O espectador de hoje não reflete mais, não contempla, não pensa; ele é pensado pelo filme. O filme é um videogame ao contrário, que programa o jogador. Mesma coisa com os filmes de caratê e espada chineses, com aquele bando de babacas voando por cima dos bambuzais, dançando um ridículo balé da morte, com o sangue que jorra em câmera lenta, as cabeças voando decepadas, os olhos vazados, tudo muito "belo" (e escroto), para fascinação dos espectadores "cult": "Oh... que belos intestinos saindo pelos buracos do ventre em contraluz!".
Isso que os americanos estão fazendo nas últimas décadas é o fim de toda inocência. O "Guerra dos mundos" antigo era muito melhor que o abacaxi recente do Spielberg. Os filmes "comerciais" tinham uma leveza simpática que o aperfeiçoamento digital extinguiu. Agora, trata-se de uma estética da morte, visível em "belos" produtos pop como "Matrix", "Sin City", "Clube da luta", tantos.... Em "Sin City" restam alguns detritos para fingir uma ética ou um "Bem". O herói é um matador deprimido, com um vago sentimento de justiça para legitimar estripamentos e degolações, na luz funérea de um mundo acabado, lugar onde mora o inconsciente do Partido Republicano.
Vendo esses filmes, fica claro nosso beco-sem-saída ético, cultural e político. A direita mercantil, a repressão antidemocrática, o poder Republicano não estão aí por acaso; eles atendem a um profundo desejo das "Coisas". A voracidade cega do mercado precisa de uma ideologia que a absolva e explique. As "Coisas" sugerem pensamentos, as "Coisas" criam idéias.
A crítica, que já teve uma missão didática, seletiva, de analisar os filmes pela trama da "cultura", da história do cinema, está passiva. Agora, a pós-modernidade (arggh...) extinguiu qualquer tradição estética ou ética. Que saudades de André Bazin, de Truffaut crítico, de Pauline Kael, Paulo Emílio, Moniz Vianna, Ely...
Que terrível a ausência de Fellini, Bergman, Antonioni, Welles, cinema realmente independente...
Existe, na teoria da informação, um conceito chamado "loudness" (volume do sinal). A cultura do espetáculo exige que esse nível suba sempre, para não decair o impacto da novidade. O mercado demanda mais e mais "loudness". O que virá em seguida? Na estetização da morte já chegamos até ao mundo dos necrotérios, ao suspense da podridão, ao ânus da vida, como no filme "Seven". "What comes next?".
A violência cresce nas telas e nas ruas do Ocidente.
Essa gente ainda vai acabar com o mundo.
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