sexta-feira, julho 29, 2005

Merval Pereira Torre de Babel


O Globo


O presidente Lula alterou ontem o tom de seu discurso, embora não tenha saído do palanque onde se aboletou desde o início de seu governo. Em plena campanha eleitoral pela reeleição — antes de receber o livro de Tocqueville que o senador Eduardo Suplicy prometeu lhe dar para convencê-lo a não se candidatar — Lula fez os costumeiros elogios à sua gestão, mas, ao contrário de dizer que a economia está já pronta para um crescimento sustentado pelos próximos dez anos, usou de uma inusual cautela no lugar das costumeiras bravatas.

Disse que nossa economia é muito vulnerável ainda, e que não se pode fazer aventuras para não haver retrocessos. Esqueceu os ataques às elites e se colocou como defensor de seus dogmas econômicos. Se o presidente realmente insistir na reeleição, poderemos ver uma campanha eleitoral jamais imaginada: Lula recebendo críticas literalmente "a torto e à direita" — da extrema esquerda à extrema direita, todos o terão como alvo — e defendendo uma política econômica ortodoxa e uma política social assistencialista, pontos que sempre foram alvos de suas críticas e hoje são os únicos em que seu governo se sustenta.

O homem que fez com que a economia brasileira se desarrumasse toda durante a campanha de 2002, pelo receio dos investidores internacionais de que houvesse uma ruptura com sua chegada ao poder, hoje é o guardião da ortodoxia. Dificilmente terá o apoio dos chamados "movimentos sociais", que querem mesmo é a mudança da política econômica, como exemplifica o líder do MST, João Pedro Stédile, que já decretou a morte deste governo.

Nem mesmo poderá contar com a integralidade do próprio PT, cuja esquerda, se não conseguir derrotar o Campo Majoritário nas próximas eleições, deverá bandear-se para o P-SOL da senadora Heloisa Helena, que já persegue o presidente Lula onde quer que vá, como o PT perseguia antigamente os presidentes conservadores.

E não estamos longe do maior dos paradoxos: vermos Lula, pela primeira vez no papel de candidato da situação, acusando a oposição de colocar em risco a estabilidade da economia do país. Se o candidato do PSDB for o atual prefeito de São Paulo, José Serra, então estará completa a balbúrdia. Será como ver o replay de uma cena de trás para frente, com os sinais trocados.

Não são apenas, portanto, os saques na boca do caixa do Banco Rural, ou os dólares na cueca, que fazem com que políticos, de diversos partidos e tendências, provoquem na opinião pública uma percepção de falência do Legislativo. São também as palavras muitas vezes sem sentido, saídas das mais diversas bocas, com ou sem concordâncias verbais, que transformam em uma verdadeira Torre de Babel a atividade política atual. Como já disse o presidente Lula em diversas ocasiões, numa acusação que mais parece autocrítica, todo mundo quer apurar a corrupção dos outros, mas sempre tenta escapar quando acusações lhe atingem.

A exemplo do empresário Edson Arantes do Nascimento, que tem mania de se referir a Pelé como se fosse uma outra pessoa, o líder político Lula parece querer dar a sensação de que o governo de Luiz Inácio da Silva não tem nada a ver com ele. Lula continua no palanque eleitoral fazendo promessas, e critica hoje comportamentos que foram seus e de seu partidos nos últimos 23 anos. Desde antes da posse, promete reduzir, ou até mesmo acabar com a corrupção, e passados dois anos e meio continua prometendo "para os próximos seis meses".

O fato é que o PT estabeleceu um padrão tão radical de fazer política que agora está sendo afetado por ele. O próprio presidente Lula, quando inverte as situações e diz que "alguém vai ter que pedir desculpas aos inocentes", esquece-se de que o principal responsável pelo que está acontecendo é o seu partido. Quem deve desculpas, em última análise, é ele próprio, que, mesmo se ignorasse os fatos, é responsável por eles na medida em que sempre foi o líder maior do PT, e foi beneficiado com o apoio de uma bancada governista comprada a peso de ouro.

O ex-presidente Fernando Henrique estabeleceu agora um prazo de validade extremamente exíguo para as investigações, jogando para o julgamento da História o que aconteceu em seu governo. Não é aceitável que o presidente Lula atribua todos seus problemas à "herança maldita", depois de dois anos e meio de mandato. Como também não é aceitável que passado tão recente mereça apenas a análise imparcial dos historiadores.

Mesmo que tenha sido uma resposta à manobra do atual governo, de recuar no tempo as investigações sobre corrupção na tentativa de misturar todos num mesmo balaio e confundir a opinião pública, as palavras do ex-presidente deram margem a que o acusassem de querer esconder alguma responsabilidade.

Também o PSDB, tão austero na cobrança dos malfeitos petistas, vacila quanto à responsabilidade de seu atual presidente, senador Eduardo Azeredo, cuja campanha a governador de 1998 foi irrigada pelo valerioduto, nos mesmos moldes dos empréstimos assumidos pelo lobista Marcos Valério para o PT. O senador Azeredo é um homem de bem, mas a se acreditar que ele não sabia que tal esquema estava montado tendo como garantia o dinheiro público da administração de seu governo, por que razão se haveria de acreditar que o presidente Lula, que também é um homem honrado, soubesse que o dinheiro sujo de Marcos Valério financiou sua festa de posse, ou que talvez tenha pago um empréstimo pessoal ao PT ?


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