Folha de S Paulo
"Neste país está para nascer alguém que queira discutir ética comigo. Sou filho de pai e mãe analfabetos. O único legado que eles me deixaram é que andar de cabeça erguida é a coisa mais importante. Não vai ser a elite que vai fazer eu abaixar a minha cabeça."
Apesar da retórica, a ética pessoal de Lula não sai bem na foto da estratégia de imolação de seus fiéis companheiros que, segundo indícios veementes e nas palavras de José Dirceu, agiram com o "conhecimento e consentimento" do presidente. Meus pais, que têm educação superior, ensinaram-me quando criança a não deixar os colegas pagarem sozinhos por nossas travessuras coletivas. Os pais de Lula, analfabetos, provavelmente ensinaram-lhe a mesma coisa, e não têm culpa se o filho não aprendeu ou esqueceu. Mas isso é quase irrelevante na crise atual, que gira em torno da ética política, não da ética pessoal.
A distinção não ocorre a Lula, mas é crucial: a ética política, tal como entendida nas sociedades contemporâneas, nasce de um longo percurso histórico de separação entre as esferas pública e privada. Raymundo Faoro, no clássico "Os Donos do Poder", encontrou no Estado patrimonial português as raízes do comportamento da elite política brasileira. Sob a lógica patrimonial, a coisa pública é uma extensão da propriedade territorial privada e a elite dirigente é um "patronato político", que "conquista a confiança popular e lhe infunde, de cima, a representação arbitral de interesses comuns". Nesse quadro, que é o avesso das noções de contrato político e cidadania, a ética política confunde-se com a ética pessoal, valoriza a lealdade e o compadrio, admite o uso da máquina estatal para finalidades privadas. Essas são, até hoje, as fontes da corrupção sistêmica no Estado brasileiro.
Lula encarna a tradição do patronato político brasileiro. Vezes sem conta, o presidente definiu a nação pela metáfora da família, na qual ele desempenha o papel de pai provedor, governando com o coração e zelando por todos os filhos, sobretudo os mais fracos. Governar é distribuir privilégios seletivamente: eis o conceito arcaico que emana do pensamento do presidente. Em setembro de 1999, Lula denunciou o Bolsa-Escola de FHC, precursor do seu Bolsa-Família, sob o argumento de que "o povo não quer migalha, nem cesta básica, nem esmola". Desde a posse, o traço característico de seu governo não está em iniciativas de cunho universal, mas nos programas preferenciais, como o Bolsa-Família, as bolsas do Prouni, as cotas universitárias, o crédito consignado. Esses "mensalinhos dos pobres" têm como contrapartida o "mensalão" dos políticos, também destinado a acomodar tensões, comprar consciências e angariar apoios.
O pensamento de Lula não se circunscreve ao arcaísmo, mas incorpora o componente mais moderno do salvacionismo. O tema do líder providencial, fundador de uma nova história e de uma nova nação, percorre os seus discursos. Atrás dele, espreita uma noção de destino nacional, de grandeza e redenção, que serviria como justificativa para todos os atos presidenciais. O empuxo messiânico fornece consistência àquilo que pareceria apenas paradoxal: o presidente que denuncia ao povo a conspiração de "elites" nunca definidas e, ao mesmo tempo, nomeia ministros os protegidos dos presidentes da Câmara e do Senado para transformar o governo num bunker contra a hipótese do impeachment.
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