O mensalão destrói a imagem ética
do PT, mas o problema do país está
na ocupação predatória do governo
por petistas e aliados
Otávio Cabral
Orlando Brito/Abritonews |
ONDE ESTÃO AS DIFERENÇAS? As galerias da Câmara ocupadas pela claque do ex-ministro José Dirceu: há uma diferença entre o partido e o Estado |
Há seis semanas convivendo com a pior crise de seu governo, deflagrada com a divulgação do vídeo da corrupção nos Correios, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva parece ainda distante de corrigir o pecado capital cometido pelo PT: permitir aos aliados e a si mesmo a ocupação predatória do Estado. O vídeo dos Correios trouxe a público a fotografia localizada da corrupção numa estatal, mas as acusações e denúncias subseqüentes sugerem que o assalto ao Estado não se limitou aos Correios, mas esparramou-se por vastos setores da máquina federal – ministérios, estatais, autarquias, fundações. O que foi feito diante da contaminação generalizada? Aprofundaram o erro original. Na sexta-feira passada, o presidente Lula almoçou com integrantes do PMDB, a quem recorreu em busca de respaldo político, oferecendo em troca novos espaços no governo, idioma que o fisiologismo histórico do PMDB entende à perfeição. Naturalmente, é sensato ampliar o apoio político ao governo, mas é um equívoco insistir em fazê-lo à custa do loteamento da máquina pública – que resultará, mais cedo ou mais tarde, em novos casos de corrupção.
Diante de um governo acuado pela crise, a cúpula do PMDB, ainda que sempre cindida entre governistas e oposicionistas, agora faz jogo duro para consumar o matrimônio com o governo. Exige que o casamento não represente compromisso em apoiar Lula à reeleição no ano que vem e quer levar mais dois ministérios. Podem ser o de Minas e Energia, desocupado por Dilma Rousseff, escalada para a Casa Civil, e o da Integração Nacional, hoje sob o comando de Ciro Gomes. Além disso, o PMDB quer os dois ministérios com "porteira fechada", jargão que designa o direito de ocupar com seus apaniguados toda a estrutura do órgão, do ministro ao ascensorista, e não só os cargos de cúpula. O PMDB é uma potência. Tem 23 senadores, 85 deputados, sete governadores e mais de 1.000 prefeitos. Mas o PMDB também é o partido do ministro das Comunicações, Eunício Oliveira, o responsável pelos Correios. É o partido do ministro da Previdência, Romero Jucá, o processado por desvio de dinheiro público. Eis o aliado que o governo procura na hora em que é acusado de permitir a disseminação da corrupção e da falta de ética nos negócios públicos...
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Ao perpetuar esse ciclo perverso, que começa com a barganha carguista, passa pelo fisiologismo e acaba se degenerando na corrupção, o presidente Lula está perdendo uma oportunidade histórica de reformar antigos hábitos da política nacional. Pior que isso: há sinais de que o governo levou a coisa ao paroxismo. Na semana passada, o funcionário Maurício Marinho, protagonista do vídeo da corrupção, fez a abertura formal dos trabalhos da CPI dos Correios e, num depoimento que durou dois dias, traçou um cenário devastador das roubalheiras na estatal: sugeriu que se investigasse uma penca de contratos e apontou suspeitas em quinze áreas. Os Correios, como se sabe, foram objeto de um escancarado rateio partidário: havia o naco do PTB, o quinhão do PMDB, a seara do PT. A partilha faz ecoar a acusação de Roberto Jefferson: "É mais barato pagar o exército mercenário do que dividir o poder", disse ele, referindo-se ao mensalão, numa de suas explosivas entrevistas. A ocupação de cargos públicos com autorização implícita de roubar é também uma forma de pagamento – e talvez seja até mais danosa do que o mensalão.
Já apareceram fartos sinais de que o mensalão pode mesmo ter existido no Congresso Nacional, mas, ao contrário do que diz Jefferson, nada surgiu envolvendo o PT. O que apareceu, até agora, envolve o PL e o PP. Na semana passada, a deputada licenciada Raquel Teixeira, do PSDB de Goiás, depôs no Conselho de Ética da Câmara e confirmou que recebeu uma oferta de 30.000 reais por mês, podendo chegar a 50.000, mais luvas de 1 milhão de reais por ano, para aderir a outro partido. Mas disse que a oferta lhe foi feita pelo deputado Sandro Mabel, líder do PL, que nega a acusação. Há suspeitas de que a distribuição do mensalão fosse feita na casa do deputado José Janene, que é do PP. Suspeita-se, também, que seu chefe de gabinete, João Cláudio Carvalho Genu, pagava aos deputados do PP um mensalão, que variava de 5 000 a 30 000 reais, cujos recursos seriam recolhidos entre os indicados do PP em estatais como Petrobras, Furnas e IRB. Nada disso compromete dirigentes ou parlamentares do PT, mas, de novo, revela o câncer central do governo: ceder espaço a aliados para a predação da máquina pública – Petrobras, Furnas, IRB.
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As acusações contra o PT no que diz respeito à compra do apoio do PTB por 20 milhões de reais no ano passado estão acompanhadas de detalhes mais críveis. O deputado Roberto Jefferson, que antes negou o acordo pecuniário, admitiu sua existência, disse que apenas 4 milhões foram efetivamente pagos pelo PT e detalhou que o dinheiro lhe chegou em duas remessas: uma de 2,2 milhões e outra de 1,8 milhão de reais, ambas entregues, segundo ele, pelo publicitário Marcos Valério Fernandes de Souza, o "operador do mensalão". Na semana passada, Fernanda Karina Somaggio, ex-secretária de Marcos Valério, voltou à Polícia Federal para fazer um segundo depoimento. Disse que, em seu primeiro interrogatório, se sentiu forçada a mentir, devido a ameaças que recebeu. Na segunda rodada, ela confirmou que o publicitário tinha relações próximas com a cúpula do PT e que de sua agência saíam malas de dinheiro em direção a Brasília, onde supostamente serviam para remunerar deputados. O publicitário nega as acusações, mas admite ter ido muitas vezes ao Palácio do Planalto (veja reportagem na pág. 72).
Como homem forte do governo no preenchimento dos cargos e no arranjo da base parlamentar, o ex-ministro José Dirceu tem sido acusado de ser mentor e chefe do esquema de compra e venda de deputados. Na semana passada, Dirceu, de volta à condição de deputado, quase tocou fogo na Câmara ao levar uma claque às galerias para saudá-lo como se seu regresso à Casa fosse um triunfo – e não, como é de fato, uma ameaça de cassação (veja reportagem na pág. 76). No dia seguinte, Dirceu depôs a portas fechadas na Corregedoria da Câmara durante quarenta minutos. Negou as acusações com respostas curtas e, a certa altura, tropeçou na soleira da ingenuidade. "Nunca fiquei sabendo de estatal repassar dinheiro para partido", disse, segundo relato de seus interrogadores. As suspeitas em torno de Dirceu decorrem de sua participação na divisão de cargos e no recolhimento de apoio político, mas também de sua concepção leninista de poder, na qual o partido está acima do Estado. Lenin, o bolchevique russo, aplicou essa idéia com sucesso, mas isso foi contra uma ditadura de czares, num país feudal e no início do século passado.
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Há dados emblemáticos dessa concepção no governo petista. Uns são quase inofensivos, como aquela imensa estrela de flores vermelhas plantada nos jardins do Palácio do Alvorada, que serviu como um símbolo visual da confusão petista entre o que é o partido e o que é o Estado brasileiro. Outros acontecimentos, porém, têm produzido efeitos bem mais nefastos. É o caso das andanças do tesoureiro Delúbio Soares e do secretário-geral Silvio Pereira, ambos da direção do PT. Os dois foram ativos na distribuição de cargos na máquina federal, mas cumpriram essa tarefa na condição única de "dirigentes partidários", para usar uma expressão empregada por José Dirceu. Eles não exerciam, como não exercem, nenhuma função pública. Ou seja: na visão petista de mundo, está claro que basta pertencer ao partido para ter direitos sobre o aparelho estatal brasileiro. Eis uma explicação possível para o fato de que, hoje, passados dois anos e meio, o governo petista esteja oscilando entre duas chagas: o aparelhismo, reservado aos próprios petistas, e a pilhagem, autorizada aos aliados, aqueles insaciáveis soldados do "exército mercenário".
O outro sinal eloqüente da concepção petista apareceu na catilinária segundo a qual há uma conspiração em marcha contra o governo. O discurso de que se prepara um golpe branco para desestabilizar a administração petista serve para desviar a atenção pública do ponto essencial – a corrupção no governo –, mas também revela o clima partidista em que vivem os mais destacados líderes do PT. Até o presidente Lula embarcou na tese da conspiração ao discursar para uma platéia de agricultores na terça-feira, mas, dois dias depois, em seu pronunciamento em cadeia nacional de rádio e televisão, corrigiu o rumo da retórica e deixou de ser o general petista para voltar a ser o presidente de todos os brasileiros. Prometeu investigações rigorosas, empenhou sua biografia pessoal no combate à corrupção, elogiou a imprensa, o Congresso, a democracia. Não disse, porém, uma única palavra sobre como acabar com a rapina promovida nos desvãos da máquina pública por petistas e aliados. A crise, seu cerne, só será combatida quando esse tema começar a ser enfrentado. Do ponto de vista imediato, contudo, há questões que não calarão enquanto não forem satisfatoriamente respondidas:
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1. O PRESIDENTE LULA FOI OMISSO? Nesta semana, o governador de Goiás, o tucano Marconi Perillo, está escalado para depor no Conselho de Ética da Câmara e promete contar sua conversa com Lula em maio de 2004. Perillo já disse que, nessa conversa, confidenciou ao presidente a existência do mensalão. O Palácio do Planalto já confirmou que Lula foi realmente avisado do mensalão por Roberto Jefferson numa conversa em janeiro deste ano e que, alertado, mandou dois auxiliares investigar o caso. Até agora, porém, o Palácio do Planalto não se manifestou sobre o aviso feito pelo governador Perillo. Há três semanas, VEJA perguntou à assessoria do Planalto qual foi a reação de Lula diante do alerta do governador. A resposta ainda não chegou.
2. JOSÉ DIRCEU ERA O CHEFE DO MENSALÃO? Até o momento, sabe-se apenas que todos os acusados – no governo e no PT – estiveram de algum modo sob o comando do ex-ministro ou sob sua influência. É altamente improvável, até por sua personalidade concentradora, que algo parecido existisse no Congresso e não tivesse o aval – ou, pelo menos, o conhecimento – de Dirceu.
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3. DELÚBIO SOARES E SILVIO PEREIRA AGIAM A MANDO DO PLANALTO? Os dois sempre trabalharam como auxiliares de confiança do então ministro José Dirceu, mas não se sabe se eram convocados apenas porque Dirceu os queria por perto ou se havia orientação superior para que os dois se envolvessem com missões de governo.
Roberto Jayme |
ONDE FOI PARAR O VIDRO DAQUI? Em 1993, a Câmara isolou as galerias com 84 placas de vidro blindex fumê. Em 2004, dizendo que "quem tem medo não faz política", João Paulo mandou tirar tudo. Está fazendo falta |
4. O DINHEIRO DISTRIBUÍDO A PARLAMENTARES VINHA DE ONDE? Existem, aqui, apenas duas hipóteses possíveis: ou os recursos que circularam pelas mãos de deputados e caixas dos partidos saíram dos cofres do PT ou eram dinheiro público. Devido aos controles crescentes sobre o Orçamento e a contabilidade de empresas públicas, é difícil que o dinheiro seja diretamente subtraído do Erário. O mais comum, no mundo da roubalheira, é extorquir propina de prestadores de serviço ao Estado e, em troca, oferecer favores na forma de oportunidade de negócios.
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5. O QUE SE FARÁ PARA DIFICULTAR A VIDA DOS CORRUPTOS? Uma excelente iniciativa seria a redução drástica do número de cargos de confiança, atualmente mais de 20.000. O Ministério do Planejamento está estudando o tema. Há uma idéia de diminuir os cargos de livre provimento para apenas 1.000. Nesse caso, haveria a supressão de 15.000 cargos de confiança de segundo e terceiro escalões. As secretarias hoje com status ministerial passariam a integrar ministérios que já existem e, por fim, seriam eliminados os cerca de 3.000 cargos que o atual governo criou desde a posse até agora. Se isso acontecer, ficando com 1.000 cargos de confiança, o Brasil se alçará ao patamar de países como a França. O PT, porém, batalha para que a mudança não seja tão brusca. Resiste, por exemplo, à supressão dos 3.000 cargos criados por Lula.
Ronaldo De Oliveira/CBPRESS |
O QUE É ISSO? É a estrela do PT nos jardins do Alvorada: nada mais emblemático da confusão entre partido e Estado |
As crises, como se sabe, são grandes encruzilhadas: delas pode-se tomar o rumo do abismo, mas não se pode seguir por ele sem tentar pegar o caminho da superação para melhorar. Não basta, como diria o Lula de outrora, ter vontade política, termo que sempre é sacado da algibeira quando se quer sepultar um assunto. O caso agora é de ter uma política de vontades – vontade de deixar um legado duradouro e positivo para os brasileiros, vontade de alijar os aliados deletérios, vontade de modernizar o Estado e vontade de separar o público do privado e o partidário do público.
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