Os escândalos nos Correios e no IRB só surpreendem por terem vindo à tona
O título acima foi inspirado pela expressão 'pernas, para que te quero', gramaticalmente incorreta, mas muito usada, como se pode verificar mediante pesquisa na Internet. Adaptada a cargos - e me refiro aos de livre preenchimento pelo governo -, o defeito mais importante é outro, o mau uso deles por quem nomeia e é nomeado.
Os novos escândalos que surgiram recentemente nos Correios e no IRB-Brasil Resseguros, a estatal desse ramo dos seguros, só constituem surpresa por terem vindo à tona. Na realidade, são apenas a pequena ponta de um enorme iceberg com sua parte submersa afundada em práticas inconfessáveis, mas tidas como naturais entre atores políticos, e a parte visível ofuscando de várias formas os olhos de quem a contempla, ambas escapando dos julgamentos político, administrativo e judiciário pela escassez de investigações e de denúncias, ou pela costumeira falta de provas.
Aliás, é sintomático dessa ineficiência institucional que muitas denúncias só alcancem repercussão e conduzam a providências corretivas quando levadas à imprensa, sem cujo e indispensável papel o iceberg seria ainda menos perceptível. Mesmo assim, quando alguns corruptos são identificados as punições são escassas, pois são proteladas por processos mal montados e recursos jurídicos infindáveis, e a tudo isso assiste uma sociedade historicamente muito tolerante com os crimes de colarinho branco.
Na raiz do problema está um espaço muito amplo de oportunidades para a corrupção, ensejado pelo grande número de cargos que são preenchidos por pessoas que não são funcionários públicos de carreira admitidos por concurso público, seja dos órgãos para os quais são indicados, seja de outros também dentro do setor público. Em geral, esses funcionários têm maior compromisso com a função pública se comparados aos que vêm para o governo via indicações políticas, muitas vezes desprovidos de qualificações e bagagem profissional para os cargos para os quais foram indicados.
Ficando apenas na esfera federal, são demasiados os cargos preenchidos pelo livre-arbítrio governamental, além de disputados e oferecidos como moeda de barganha para constituição da chamada base parlamentar do governo e apoio numa ou noutra votação no Congresso. Notícias veiculadas pela imprensa dão conta de 20 mil cargos no Poder Executivo, um número engordado pelo atual governo para contentar seus quadros partidários e quem mais quiser apoiá-lo.
Por menor que seja a probabilidade de encontrar um corrupto num conjunto de cargos e seus ocupantes, um número como esse inevitavelmente irá gerar uma quantidade considerável de casos efetivos de corrupção. Supondo que a probabilidade desses casos seja pequena, de 1% num ano, haveria 200 casos de corrupção nesse período. Se não aparecem tantos ou mais, é por conta das referidas características do iceberg.
Um governo eleito tem todo o direito de nomear pessoas de sua confiança para dirigir os vários entes da administração, com o objetivo de dar seqüência às diretrizes do seu programa. Esse argumento, todavia, perde sustentação quando, além da diretoria, são também nomeadas pessoas para cargos de chefia ou até de posição hierárquica inferior. E, ainda, quando há indicados que não têm compromisso com qualquer diretriz que não seja a dos interesses pessoais ou de quem os indicou.
Tome-se, por exemplo, o caso do IRB, cuja diretoria, conforme relatou este jornal anteontem, foi loteada entre indicados por quatro partidos - PTB, PP, PMDB e PT. Que diretriz se pode esperar dessa esdrúxula combinação? E, se os indicados não têm uma diretriz, o que estão fazendo lá? Noutro exemplo, o dos Correios, o funcionário flagrado ao receber dinheiro ocupava um cargo de chefia que deveria ser de um funcionário de carreira, a exemplo do que ocorre em instituições blindadas contra indicações desse tipo, como o Banco do Brasil e o Banco Central.
E mais: por que tanto interesse por cargos? No meio das muitas entrevistas sobre o escândalo dos Correios, o senador Ney Suassuna (PMDB-PB) eximiu-se de qualquer responsabilidade pela indicação de um dos envolvidos, assim se referindo ao cargo que ocupava e que informou haver devolvido antes ao governo: 'Esse cargo vale tanto quanto nada. É um cargo tão ruim que quando peço um estágio não consigo' (Folha de S.Paulo, 19/5).
Fica por conta do leitor imaginar as características de um bom cargo segundo a avaliação da prática política nacional. Nas estatais, sei que as diretorias de compras despertam grande interesse, ao contrário das empresas privadas, onde as de vendas conferem maior prestígio. Note-se que nos dois casos citados as denúncias atingem responsáveis por áreas como as de 'contratação de materiais' e de pagamentos de comissões por serviços prestados.
Assim, não é surpreendente que vez por outra sejam encontrados também gatunos nesse enorme saco de gatos que é o dos padrinhos e ocupantes de cargos governamentais de livre provimento. Muitos mais seriam encontrados mediante engenho, arte e empenho em buscá-los.
Mesmo com esse esforço se aprimorando, a tarefa é tão gigantesca que o caminho mais adequado seria o de reduzir fortemente o tamanho do problema, mediante drástica diminuição do número de cargos desse tipo. Na contramão desse caminho, o governo Lula criou mais cargos dessa natureza e descuidou do seu adequado provimento, deparando-se agora com um problema agravado por iniciativa própria. Assim agindo, não pode reclamar das críticas que apontam a sua incompetência gerencial.?
O Estado de S. Paulo
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