segunda-feira, maio 23, 2005

Marcos Sá Corrêa:O avô que não tivemos

 22.05.2005 |  A caixa em que ele chega pelo correio até assusta. É um pacote grande, pesado, anguloso, que pelo jeito só pode conter um desses incunábulos de coro que a Lei Rouanet banalizou como livros de arte. Dentro, vem um estojo branco, forrado de verde e amarelo. E do estojo sai um álbum de fotografias e recortes que, mesmo fechado, tem quase meio metro quadrado de área, acolitado por dois livros, um folheto e um CD. Trata-se de "Tancredo Neves, um homem para o Brasil".

Assim mesmo, como se ele ainda estivesse por aí. E em campanha. Aliás, talvez esteja, porque quem apresenta o livro é Roger Agnelli, diretor-presidente da Companhia Vale do Rio Doce, que bancou a edição, e Andrea Cunha Neves, neta de Tancredo, mas quem oferece o embrulho é o governador Aécio Neves, o neto que o seguiu na política e agora está no governo de Minas Gerais, mas sempre com um pé em outros lugares, como se o estado já fosse apenas um pedaço de sua jurisdição.

Ganhar uma peça dessas geralmente dá uma preguiça danada. Eles não cabem na estante. Não servem para folhear no colo. São incômodos de ler, quando têm o que ler. E ainda por cima inspiram aos artistas gráficos tanta eloqüência visual que as palavras se espremem entre as imagens como se estivessem num catálogo de tipos para impressão. Feitos, quase exclusivamente, para enfeitar tampo de mesa, como se vê em na sala de espera de bons consultórios ou em revistas de decoração, costumam ser um presente bom de ganhar e ruim de ter em casa. Haja mesa para tanta arte.

O maior defeito de "Tancredo Neves, um homem para o Brasil"é ser bonito demais, senão para seus fins, pelo menos para os nossos. Para homegeá-lo, é irretocável. Entra-se em suas belas páginas como num memorial de papel couché, onde a editoração eletrônica conseguiu gravar a pompa de um mausoléu e a intimidade vicária de mexer em velhos álbuns de família ou gavetas de guardados alheios. Há fac-símiles de jornais, folhetos de campanha e até a reprodução de uma carta de João Paulo II carpindo sua perda. Está metida num envelope com as armas do Vaticano. É preciso abri-lo para ler o texto.

As fotos, viradas em sépia pelo Photoshop, estão presas em cantoneiras, como nos álbuns antigos. Os manuscritos são mesmo manuscritos, impressos em papéis que parecem amarelados pelo tempo com tintas de caneta descoradas. Convivendo de perto com Tancredo, quem tomaria a liberdade de enfiar a mão no bolso de seu paletó e sacar a folha dobrada, onde ele escreveu de próprio punho como num escapulário a oração de S. Francisco de Assis – "Senhor, fazei de mim o instrumento de sua paz"? O álbum deixa. Até convida.

Ele foi um homem público do tempo em que os homens públicos eram mais reservados. Agora, mais de vinte anos depois de sua morte, volta-se dessa invasão da privacidade de Tancredo com a sensação de ter visitado um parente ilustre mas dissimulado, cuja ausência tornou mais próximo do que nunca. É isto: Tancredo não chegou a ser nosso presidente, mas com a ajuda da posteridade esse livro pretente transformá-lo no avô de todos nós. Assim como Getúlio Vargas saiu da vida para entrar na História, Tancredo sai da História para entrar na família.

Mas ele, além desse avô totêmico, foi também o pai de um regime civil que está está cada vez mais vivo, vivo até demais. E nisso o livro peca. Para a democracia que aí está, bulir na memória de seu fundador é um perigo. Porque ela não tem a menor sombra de seus traços. Nestes tempos em que repórteres lambem o beiço com um improviso de Lula, Severino ou Garotinho, melhor não lembrar que em 15 de janeiro de 1985 tudo isso saiu de um discurso no Colégio Eleitoral que falava até em "pátria" sem parecer ridículo?

Quem duvidar confira: "A pátria não é o passado, mas o futuro que construímos com o presente. Não é a aposentadoria dos heróis, mas tarefa a cumprir; é a promoção da justiça, e a justiça se promove com liberdade". Parece mentira. Mas há pouco mais de duas décadas um político como Tancredo ainda conseguia afinar os sentimentos da rua com as leis da sintaxe. Falar ao povo ainda não tinha virado sinônimo de dizer besteira. Inundar de gente as praças públicas dispensava a tradução do publicitário Duda Mendonça.

Há, na oratória de Tancredo, uma promessa que, mesmo sem a sua morte, talvez não passasse de uma doce mentira, mas com ela sem dúvida ficou sendo uma trapaça amarga. Quem se arriscaria hoje a anunciar sua eleição à presidência da República com uma legítima citação de Verlaine? Ele se arriscou: "Com o êxtase e o pavor de haver sido o escolhido, entrego-me hoje ao serviço da Nação". Depois de passar a ditadura decifrando ordens-do-dia de chefes militares – como se, espremendo bem, desse para tirar algum sentido daqueles manuais táticos de dislexia – ouvir Tancredo insinuava ao brasileiro que, da volta dos civis ao poder, o mínimo que poderia esperar era a mudança da vida pública brasileira pelo refinamento da linguagem.

"Quero convidá-los" – ele se preparou para dizer, mas não disse, na primeira reunião de seu ministério – "a visualizar, num futuro não muito distante, uma nação em que haja sido abolida a insegurança gerada pela miséria, pela ignorância e pelo desemprego; uma nação em que todos os os cidadãos possam almejar melhores condições de vida e alcançá-las através de seu próprio esforço". Ouviu isso, companheiro?

Preso numa encadernação de arte, Tancredo não presta nem metade do serviço que prestaria se viesse nos recordar enquanto é tempo que esse tipo de discurso também pode circular em edições baratas, contrariando a crença corrente de que tudo no mundo só pode ser tosco ou elitista. O Brasil seria diferente se ele tomasse posse? Não dá mais para saber. Mas dá para saber, e convém lembrar, que não faz tanto tempo assim, quando nos prometeram um novo regime, o que estava subentendido não era essa queda interminável no poço sem fundo da rastaqüeragem populista.
no mínimo

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