O "não" dado pela opinião pública francesa à Constituição da União Européia é mais um dos sinais ostensivos de que o modelo de liberalização financeira ilimitada, inaugurado nos anos 70, está fazendo água de forma irreversível.
É impossível um modelo econômico em que o capital financeiro se desgarra da economia real. O capital financeiro não tem vida própria. Ele existe como reflexo da economia real, por sua capacidade de alavancá-la e de crescer com ela, de trazer bem-estar social por meio do crescimento.
Quando um investidor adquire uma empresa em dificuldade, recupera-a e a vende para terceiros, está exercendo um papel de arbitragem legítimo, estritamente ligado à melhoria da economia real. Quando adquire ações de empresas infantes ou maduras, exerce uma função financeira, mas amarrada à economia real. Quando fornece hedge a produtores, atua da mesma forma.
O que ocorreu foi que o modelo de liberalização total dos capitais cortou os vínculos entre o capital produtivo e o financeiro, a partir de determinado momento em que as grandes corporações mundiais tornaram-se "sócias" desse modelo.
As disfunções começaram há muitos anos, deixando inúmeras vítimas pelo caminho: o sistema bancário japonês (e o próprio Japão), o sistema hipotecário norte-americano, a bolha da internet, a bolha dos "junks bonds", a bolha com as dívidas dos emergentes, os fundos "piranhas" e, antes disso, as grandes jogadas contra o câmbio de países desenvolvidos.
Não é à toa que, há alguns anos, o maior especulador mundial, George Soros, e o maior especulador brasileiro, Jorge Paulo Lehmann, passaram a investir fortemente na economia real por perceber a falência desse modelo. Lehmann, aliás, tomou a decisão de vender seu banco depois de ter se entupido de títulos da dívida externa brasileira -provavelmente dispondo da informação de que o Banco Central planejava resgatar parte deles- e foi atropelado pela crise russa. Nem os melhores conseguiram mais dominar todos os fatores de influência desse hospício global em que se converteu o sistema financeiro internacional.
Não apenas isso. A liberalização financeira favoreceu o circuito do dinheiro do crime organizado, do narcotráfico, do narcoterrorismo. Arrebentou com os controles policiais e fiscais dos governos nacionais e do próprio mercado de capitais -vide os escândalos corporativos norte-americanos.
O modelo ofereceu um Estado fortemente regulador, em troca do Estado mínimo; ofereceu desenvolvimento, em troca da redução dos benefícios sociais. E não entregou nem uma coisa nem outra.
Hoje em dia até valores que se supunham irreversíveis -como a democracia- começam a ser colocados em xeque. A natureza da rebelião francesa é -guardadas as proporções entre um Estado desenvolvido e Estados mais atrasados- a mesma dos cidadãos da Venezuela, da Argentina e da Bolívia.
Qualquer estratégia de país não pode deixar de levar em conta esse quadro.
folha de s paulo
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