A dez dias do início da Cúpula América do Sul-Países Árabes, o governo brasileiro ainda negocia alterações substanciais no documento final que foi preparado na Tunísia, sob a coordenação do secretário-geral da Liga Árabe, o ex-chanceler egípcio Amre Moussa. O ponto mais polêmico, e que já havia sido motivo de inquietação por parte do governo dos Estados Unidos depois que jornais americanos vazaram partes do texto do comunicado, é o que trata do combate ao terrorismo, abordado nos parágrafos 2.9 - 2.10.
A proposta dos países árabes, antecipada por uma defesa da necessidade de enfatizar "a importância de se combater o terrorismo em todas as suas formas e manifestações, através de uma ativa e eficiente cooperação internacional, através das Nações Unidas e organizações regionais", baseada no estrito cumprimento à lei internacional, pede uma conferência internacional "para se estudar este fenômeno, atacar suas raízes e definir o crime de terror".
O interessante é que um texto inicial sugeria que essa reunião fosse feita sob os auspícios da ONU. Na última versão, está definido que os Estados Unidos a organizariam, o que pode indicar já um resultado das pressões americanas junto a países árabes amigos.
Mas, na definição de terrorismo, os países árabes querem incluir no documento a distinção entre terrorismo e "o legítimo direito das pessoas de resistir à ocupação estrangeira com vias a alcançar uma independência nacional de acordo com a lei internacional e aval das Nações Unidas".
Os Estados Unidos e Israel estão se movimentando politicamente para evitar que essa distinção seja tornada oficial no documento, pois ela legitimaria, no seu entender, a atuação de grupos que são considerados terroristas. O Brasil está propondo que essa distinção seja retirada do texto, e que nele sejam incluídas referências a convenções internacionais que tratam dos direitos humanos, lei dos refugiados e lei internacional humanitária.
A questão aqui é se o terrorismo pode ou não ser justificável em certas situações, o que alguns países árabes defendem e causa arrepios aos Estados Unidos e também a Israel. Na recente reunião do Clube de Madri para discutir terrorismo, que antecedeu a divulgação do documento de reforma da Organização das Nações Unidas (ONU), essa discussão surgiu com muito vigor.
O ponto mais importante do documento divulgado na ocasião foi a definição do que seja ato terrorista, em coincidência com o que propôs Kofi Annan dias depois oficialmente aos membros das Nações Unidas: deve ser considerado terrorista todo aquele que ataca civis indefesos com o objetivo de impor suas idéias, sejam elas de que tendência política forem.
A definição proposta por Annan, e o documento do Clube de Madri, estão em consonância com o que desejam consagrar os Estados Unidos em sua luta contra o terrorismo. Segundo o documento de Madri, "não existe justificativa para atacar civis e não-combatentes por meio da intimidação e de atentados mortais" e "em nenhum caso as diferenças políticas e filosóficas sobre a natureza do terrorismo podem constituir uma escusa para a inação".
Outra questão delicada, e que diz respeito diretamente a Israel, está no parágrafo 2.6. A proposta dos países árabes reafirma princípios já aceitos por Israel, como o programa Terra por Paz, tema principal de Yitzhak Rabin e Shimon Perez, definido na reunião de Oslo de 93; resoluções do Conselho de Segurança e da Assembléia Geral da ONU, e a implementação do plano americano Mapa da Paz "de tal maneira que assegure a materialização dos legítimos direitos nacionais dos palestinos, incluindo o direito ao retorno e a autodeterminação e estabelecimento de seu estado independente".
Um ponto, porém, é inaceitável para Israel, e o Brasil está tentando retirar do documento final: definir Jerusalém Oriental como capital da Palestina, onde está localizado o Muro das Lamentações, o lugar mais sagrado do judaísmo. Além disso, esse parágrafo trata da retirada de Israel "de todos os territórios árabes ocupados para as linhas de 4 de junho de 1967, incluindo as Colinas de Golan e Fazendas de Sheba", o que também causa discordâncias entre árabes e israelenses.
Mesmo não tendo autorizado os Estados Unidos a participarem da reunião como observadores, como insistiu a secretária de Estado americana Condoleezza Rice em sua recente visita, o governo brasileiro está tomando todas as precauções para evitar que a reunião com os países árabes ganhe uma dimensão política além do que se pretende: uma cúpula para fortalecer os laços comerciais e fazer a "aproximação de duas regiões inteiras do mundo em desenvolvimento, ambas de proporções continentais, fora da programação regular de trabalho das Nações Unidas. Nela subjaz uma proposta de integração bi-regional Sul-Sul", conforme definição do Itamaraty.
O fato é que essa aproximação de duas regiões, representadas por organismos como a Liga Árabe e o Mercosul ampliado, tem um peso político inegável, que se refletirá em um comunicado conjunto assinado por 34 países, sendo 22 árabes. A representatividade das delegações será também outro ponto importante. Há sinais de que os Estados Unidos tentam esvaziar a reunião convencendo alguns países amigos a não enviarem chefes de Estados, mas representantes econômicos. E o presidente da Argentina, Néstor Kirchner, está sinalizando mais uma vez com sua ausência, numa demonstração de que se opõe à liderança regional do Brasil e com isso enfraquecendo o Mercosul.
O GLOBO
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