sábado, abril 23, 2005

André Petry: Isso é que é racismo

"É como dizer que os deuses dos negros
não merecem tantas
regalias. É como dizer
que são deuses de segunda classe. É como
dizer que os nossos bichos, os bichinhos dos
brancos, ora essa, não podem ser mortos só
para que deuses de negros, ora essa,
sintam-se
reverenciados"

Desde que o argentino foi preso num campo de futebol sob a acusação de racismo, ficou claro que entramos numa distraída temporada de combate à discriminação racial. É uma campanhazinha distraída porque, no entusiasmo da denúncia, no gozo do espetáculo, no embalo dessa nossa americanização do racismo, estamos enxergando racismo demais onde ele é escasso – e, o que é pior, enxergando quase racismo nenhum onde ele é farto. O prêmio de racista do mês, por exemplo, não deve ir para jogadores de futebol da Argentina. Deve ir para aqueles brasileiros que dizem pertencer às sociedades protetoras dos animais.

Eis o caso: os defensores dos animais tentaram derrubar um artigo de uma lei gaúcha que autoriza o sacrifício de animais nos cultos de religiões de origem africana – cujos adeptos, ninguém desconhece, são na maioria negros. Os defensores dos animais acham que imolar bichos numa cerimônia religiosa é crueldade e que a lei de proteção aos animais, portanto, não pode permitir tal selvageria. O racismo aqui é sutil, mas é imensamente nefasto: o que os pró-bichos estavam tentando, na prática, era impedir que os negros exercessem na plenitude a sua cultura – aliás, uma cultura bela, rica, colorida e intensa, à qual os brasileiros devem talvez mais do que costumam perceber.

Nas religiões de matriz africana, sacrifica-se um animal para oferecê-lo às divindades. Impedir que tal prática seja exercida, além de constituir um agudo desrespeito à cultura do outro, é mais ou menos como dizer que os deuses dos negros não merecem tantas regalias. É como dizer que são deuses de segunda classe. É como dizer que os nossos bichos, os bichinhos dos brancos, ora essa, não podem ser mortos só para que deuses de negros, ora essa, se sintam devidamente reverenciados. Até porque deus que preste, ora essa, não exige que seus fiéis saiam por aí matando bichos...

Como racismo no Brasil é sempre coisa do vizinho (argentino ou não), os defensores dos animais que lutam contra o rito das religiões africanas vão jurar de pés juntos que não são racistas, que jamais quiseram dizer que o deus dos negros não é tão bom quanto o deus dos brancos, que existem até negros entre eles e que queriam apenas evitar atrocidades contra os animais. Pode ser verdade, mas não basta. Se for isso mesmo, se o que os move é tão-somente a defesa dos animais, onde estão então os protestos diante dos abatedouros de bois, porcos e aves? Onde estão os protestos contra a condição do Brasil de maior exportador mundial de carne bovina e de frango? Dias atrás, o governo da Rússia anunciou que vai voltar a permitir a importação de carnes bovina, suína e de frango de regiões do Brasil onde havia suspeita de alguma doença. Foi uma excelente notícia para a economia brasileira – e não se ouviu o protesto dos defensores dos bois, porcos e galinhas.

Em tempo: por sorte, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul decidiu, embora por maioria apertada, apenas 14 votos contra 10, que a lei vale. Ou seja: o racismo saiu derrotado. Mas cuidado: ainda 'stamos em pleno mar.

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