quarta-feira, março 23, 2005

no minimo -Guilherme Fiuza: Vinte anos foi pouco

23.03.2005 | A intervenção federal nos hospitais do Rio está cada vez mais com cara de piada de português. Especialmente aquela em que um avião cai sobre um cemitério. As buscas não param, e logo já são milhares os corpos encontrados no local. A má notícia é que crise social servida em forma de novela continua dando ibope alto. Com a escavação de outras velhas modas, como o gosto pelo plebiscito e a ressurreição da Guanabara, nota-se que a festejada democracia brasileira faz 20 anos com jeito de adolescente tardia.

O governo federal, como se sabe, aumentou os gastos públicos em quase 20% no último ano. Mas isto não teve nada a ver com a área de saúde, onde os gastos ficaram abaixo do que determina a Constituição. Daí começou a briga entre Brasília e Rio. Briga por dinheiro, como tantas que o governo FH teve com prefeituras do PT. É o lado político da execução do orçamento – o que pode até ser reprovável, mas sempre foi assim, e sempre será. É do jogo. O que não é do jogo é a transformação desta disputa em circo.

A intervenção de Brasília na saúde municipal do Rio é um dos blefes mais bem sucedidos da história da federação. Um estado de calamidade decretado pelo sócio majoritário da situação calamitosa. Salas de cirurgia ociosas, obras inacabadas, falta de pessoal, filas longas. Estas e outras mazelas, agravadas pela crise orçamentária do setor (leia-se: falta de dinheiro), foram transformadas em homicídio culposo do prefeito do Rio. Uma administração insensível, que mantém um banqueiro cuidando de hospital e aplica milhões da saúde no mercado financeiro.

É curioso que este tipo de acusação de passeata ainda encontre eco no noticiário. Provavelmente, o ideal seria que o secretário guardasse a verba da saúde debaixo do colchão. Para muita gente boa, o ideal de administração continua sendo Adib Jatene, o homem do coração, que usou todo o seu prestígio para criar um novo imposto no país recordista mundial em carga tributária. Ninguém resiste às razões do coração, pena que elas sejam cegas.

O Brasil só pode estar, no mínimo, com a visão turva ao levar a sério o uso das Forças Armadas contra os problemas da saúde pública. Pelo simples fato de que as Forças Armadas brasileiras não têm onde cair mortas, e seus próprios hospitais estão em petição de miséria. Hospital de campanha em praça pública na “guerra da saúde”? Como diria o general De Gaulle, brincadeira tem hora.

O pior da festa nem é ver o governo da República investindo em cenários cinematográficos e slogans o dinheiro e o esforço que deveria ter posto na pasta da saúde. O pior é ver gente esclarecida acreditando na pantomima. Ministro tirando foto diante de avião da FAB cheio de remédios (estarão os distribuidores de medicamentos em greve?), interventores descobrindo uma nova teia de aranha em teto de ambulatório, sub-interventores dando declarações com sotaque de panfleto de Jandira Feghalli. E já se ouve gente alfabetizada propondo que Lula repita a “intervenção” na área de segurança pública.

Por essas e outras é que a festejada democracia brasileira completa 20 anos com jeito desengonçado de adolescente tardia. O Brasil merece Severino e os aumentos de salário dos deputados, porque é um país que ainda não sabe fazer contas. Confunde teatro amador com choque de gestão na saúde pública. Vota em Lula porque ele promete levar pobres ao gabinete do ministro da Fazenda, e censura Lula quando ele decide que o governo não gastará mais do que arrecada.

Este Brasil da geléia geral, do oba-oba institucionalizado, quer a volta dos plebiscitos. Como não há política de segurança pública (dá muito trabalho criar uma), decide-se atacar a violência a golpes de populismo. No fundo, a democracia brasileira ainda tem a cara de um grande programa de auditório. Querem proibir a venda de armas ou não querem? Libera os bingos ou proíbe? Querem a devolução da Guanabara aos cariocas, ou deixa assim mesmo? Uma farra. Lombardi para presidente.

O Brasil merece Severino, assim como os cariocas merecem o casal Garotinho – até porque votaram nele maciçamente duas vezes, e não dá para dizer que Rosinha foi eleita em primeiro turno porque o obscuro interior do estado tomou a capital como refém. A ressurreição da Guanabara até pode ser uma boa, mas antes é preciso verificar, como na piada, qual povo se pretende botar lá.

Se for esse povo que acredita que o ministro soprano Humberto Costa tirou a cidade do CTI com o esparadrapo que faltava, melhor deixar como está. E com cuidado para que a Aeronáutica, na busca heróica por áreas livres para seus hospitais de campanha, não se instale sem querer sobre algum cemitério. Sintonizada na “guerra da saúde”, a opinião pública não suportaria saber de um número tão elevado de mortos.

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