domingo, março 27, 2005

Folha de S.Paulo - Ferreira Gullar: O preço da liberdade - 27/03/2005



O Sesc Ipiranga, ao me convidar para participar de um ciclo de leituras dramáticas neste mês, ofereceu-me a oportunidade de reviver alguns momentos da história do Grupo Opinião, que, no campo teatral, em dezembro de 1964, deu início à luta contra a ditadura militar. Pude assistir, antes do debate que se realizaria em seguida, a um espetáculo-síntese das peças "Opinião" e "Liberdade, Liberdade", o que não só me comoveu como me levou de volta àqueles dias difíceis, dos quais, então, estranhamente, senti saudade!
É que, hoje, aquelas cenas, falas e canções surgem sobre um fundo de realidade do qual estão excluídos os temores e ameaças daquele momento, embora não de todo, porque, na verdade, estão presentes como passado. Os atores agora são outros, mas a seus gestos e palavras se misturam os de Nara Leão, de Zé Kéti e de João do Vale: subitamente estou em nosso teatrinho da rua Siqueira Campos, em Copacabana, lotado de um público fervoroso e solidário.
Mas tampouco me limito a evocar o espetáculo, já que a essa evocação se juntam as lembranças de como ele nasceu, em meu apartamento em Ipanema. A questão que nos colocávamos era: como continuar a luta agora que não há mais o Centro Popular de Cultura (CPC)?
Nara acabara de lançar um disco intitulado "Opinião", em que cantava músicas de Zé Kéti e João do Vale, que ela ouvira no Zicartola. Vianinha teve então a idéia de fazer um show que reunisse os três artistas, mesmo porque cada um deles representava classes diferentes da sociedade brasileira, o que daria margem a tocar em assuntos como a reforma agrária, a desigualdade econômica e a liberdade de expressão.
Para que tais problemas não surgissem como mera provocação à ditadura, o texto do show se basearia em depoimentos dos três protagonistas. Havia, no entanto, um problema para o qual não víamos solução imediata: se surgíssemos como um novo grupo teatral, a ditadura logo perceberia que era o CPC com nova cara.
A saída foi, ao convidarmos Augusto Boal para dirigir o espetáculo, propor que o Teatro de Arena de São Paulo assumisse nominalmente a produção do espetáculo. Resolvido esse problema, restava um último: onde montá-lo? Vianinha se lembrou de um espaço no shopping center da Siqueira Campos, onde o Arena havia se apresentado em 1959.
Ali, utilizando as cadeiras velhas de um antigo cinema, montamos o nosso precário teatro, que entraria para a história. O show "Opinião" estreou, e as casas lotadas com um mês de antecipação impediram que a ditadura o tirasse de cartaz.
Entusiasmados com o êxito do espetáculo, que juntava música popular brasileira e texto político, Millôr Fernandes e Flávio Rangel tiveram a idéia de criar um espetáculo que se chamaria "Liberdade, Liberdade". A censura do regime, que já estava alerta, tentou proibir a peça, mas surpreendeu-se ao ver que, para isso, teria de censurar palavras de Sócrates, Aristóteles, Voltaire, Shakespeare, Lincoln, Danton, García Lorca e Castro Alves entre outros... Após uma semana de hesitação, liberou-a e, em 21 de abril de 1965, ela estreava com o teatro lotado.
Algumas semanas depois, recebo um telefonema de Pichín Plá, que, naquela tarde, cumpria seu turno na bilheteria. Avisa-me que um sujeito comprara para aquela noite 40 ingressos, exigindo que fossem todos juntos. Lembrei-me de que o vice-governador Rafael de Almeida Magalhães ia assistir ao espetáculo exatamente naquele dia a convite de Hélio Fernandes, diretor da "Tribuna da Imprensa" e irmão de Millôr. Decidi ligar para Hélio, que ligou para Rafael, que ligou para o chefe de polícia.
Começado o espetáculo, descobriu-se no banheiro masculino um objeto estranho: era uma bomba caseira. Estávamos tensos, certos de que algo ia ocorrer. De fato, no momento em que Paulo Autran monologava em cena, uma voz gritou: "Comunista!". E logo outras repetiram: "Comunista! Comunista!". Mas a platéia reagiu e, batendo palmas, as abafou. Localizamos o ponto de onde partiram os gritos e avisamos os policiais, que, findo o espetáculo, detiveram um grupo de homens suspeitos e os revistaram: traziam escondidos sob o paletó cassetetes, canos de ferro e revólveres. Desarmados, saíram do teatro quando o público já tinha ido embora e se depararam com um fotógrafo e um repórter da "Tribuna". No dia seguinte, o jornal estamparia na primeira página a foto do chefe do bando: um oficial da reserva da Aeronáutica, em mangas de camisa. Naquela noite, na Fiorentina, gargalhávamos: "Pusemos a polícia da ditadura contra a ditadura! Dialética pura!".
Faz 40 anos que tudo isso aconteceu. Naquela noite, ainda pudemos rir, mas, certa madrugada, estouraram a bilheteria do nosso teatro com uma bomba. O público, assustado, afastou-se, fomos à falência. Durante o debate no Sesc Ipiranga, quando alguém afirmou que o Brasil não mudou e que continuamos sob uma ditadura disfarçada, discordei veementemente. É que nós também dizíamos, antes do golpe de 1964, que a democracia brasileira era uma farsa, uma vez que a sociedade continuava injusta. Só depois que a tal da "democracia burguesa" acabou percebemos o quanto ela era preciosa. Tivemos de lutar 20 anos para reconquistá-la e só então podermos, livremente, clamar de novo pela sociedade menos injusta.

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