sábado, fevereiro 19, 2005

VEJA André Petry
O beato do apagão

"Afinal, todo mundo sabe que a gravidez
indesejada é comum entre mulheres pobres.
Mulher abastada, se quiser, faz aborto na
esquina, com conforto e a higiene necessária"

Severino Cavalcanti não é um homem de seu tempo. É de antes. Como radical da direita católica, daqueles que desenvolvem um tipo peculiar de fobia pública a tudo o que se assemelha a prazer sexual, Severino é contra a flexibilização da lei do aborto. Acha que a legislação atual, que autoriza o aborto apenas em casos de estupro e risco para a vida da gestante, já é permissiva demais e deveria ser revogada.

Enquanto isso...

O governo decidiu aumentar a distribuição de pílulas do dia seguinte nos postos da rede pública de saúde. A pílula do dia seguinte -- que os religiosos dizem ser abortiva, mas os cientistas, que afinal são autoridade no assunto, afirmam que não -- é uma medida sensata de saúde pública. Afinal, todo mundo sabe que a gravidez indesejada é comum entre mulheres pobres. Mulher abastada, se quiser, faz aborto na esquina, com todo o conforto e com a higiene necessária.

Severino acha que relacionamento homossexual é coisa do diabo. Jamais votaria a favor de qualquer projeto de lei que regularizasse a união civil entre pessoas do mesmo sexo. Como presidente da Câmara, já prometeu que nada nesse âmbito, no que depender dele, será aprovado.

Enquanto isso...

Um juiz de Porto Alegre, Roberto Arriada Lerea, reconheceu que a separação de um casal de homens que viviam juntos havia cinco anos devia gerar os mesmos efeitos de um divórcio heterossexual. Ou seja: os bens adquiridos durante a união estável deveriam ser divididos entre os dois. É uma decisão inovadora, na qual o juiz faz questão de dizer que a união estável -- ou o casamento civil -- é acessível a todos os brasileiros, não importa o sexo. Nem a religião.

Severino rejeita a idéia de autorizar a pesquisa de células-tronco embrionárias, sob a alegação, difundida pelo dogma religioso, de que um embrião representa uma vida, a vida é um dom divino e, portanto, tem de manter-se imune à ação do homem. A pesquisa de células-tronco embrionárias é a maior promessa científica de triunfo humano sobre a morte e a dor, mas religiosos como Severino não entendem assim. No Congresso Nacional, o projeto que trata do assunto produziu um consenso. Os cientistas brasileiros poderão pesquisar os embriões que estiverem há mais de cinco anos nos estoques das clínicas de fertilização e prestes a ser descartados. Ou seja: o máximo que se conseguiu foi permitir que os cientistas estudem os cerca de 20.000 embriões que, de qualquer modo, acabarão sendo jogados no lixo.

Enquanto isso...

O governo da Inglaterra já concedeu duas licenças para que dois grupos de cientistas explorem os mistérios das células-tronco embrionárias, que prometem oferecer a cura de doenças degenerativas, como Alzheimer e Parkinson. A autorização mais recente foi dada ao cientista Ian Wilmut, o pai da ovelha Dolly. Ele ganhou a permissão mais avançada que existe até hoje: poderá fazer clonagem terapêutica de embriões humanos para estudar sua mecânica a fundo. Se e quando os ingleses tiverem sucesso, é provável que apareça carola brasileiro rico pegando o avião para se tratar por lá.

Durante a longa votação que resultou na vitória de Severino, o plenário da Câmara ficou subitamente às escuras. O apagão durou uns quatro minutos. Era premonitório.

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