segunda-feira, fevereiro 21, 2005

O ESTADO DE S.PAULO Direitos humanos? Denis Lerrer Rosenfield


Infelizmente, estou chegando à triste conclusão de que policiais não são humanos. Por mais que me esforce em provar o contrário, há uma lógica implacável que me conduz a essa conclusão. Sou barrado por todos os lados em que se move o meu raciocínio, como se estivesse embretado num círculo vicioso, sem saída. Determinadas notícias só tendem a aumentar a minha confusão. Vejamos dois retratos, que deram lugar a duas distintas e divergentes avaliações.
Retrato um. Um policial foi assassinado por um grupo de sem-terra num acampamento do MST. Um outro foi violentamente espancado e permaneceu preso. Um terceiro, a duras penas, conseguiu escapar e alertar os seus colegas. Depois de árduas negociações, conseguiram resgatar o policial seqüestrado, como se a lei estivesse do lado dos que vivem ao arrepio do estado de direito. Já é suficientemente bizarro que policiais necessitem negociar com assentados a libertação de policiais! Onde está o Estado? O que dizer, então, de funcionários e proprietários rurais que são seqüestrados, insultados e maltratados das mais diferentes formas, sem que os seus direitos mais elementares sejam respeitados?! Se nem os representantes do Estado estão ao abrigo das ações do MST, é porque os cidadãos comuns estão definitivamente abandonados.
O que fez o governo? Mandou um funcionário de terceiro escalão do Incra acompanhar o acontecido, como se se tratasse de um mero acidente de percurso por parte de um movimento político, revolucionário, alinhado às posições do Ministério de Desenvolvimento Agrário e aliado de longa data do Palácio do Planalto. Ainda recentemente, o presidente Lula usou novamente um boné do MST. O mais curioso é que o funcionário enviado envolve um órgão público aparelhado diretamente pelo MST e pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). Ou seja, foi enviado um simpatizante do MST para investigar o próprio MST. O que disse o secretário Nacional dos Direitos Humanos, Nilmário Miranda? Nada, manteve um obsequioso silêncio, como se os "direitos humanos" não se aplicassem às vítimas do MST. Policiais não são, então, humanos!
Retrato dois. O caso muda de figura quando uma religiosa americana, ligada ao MST e à CPT, é brutalmente assassinada. O seu assassinato deve ser claramente elucidado e os seus responsáveis, severamente punidos. É inaceitável que uma religiosa, ameaçada, fique à mercê de criminosos, sem que o Estado nada faça, como se aquele território fosse uma terra sem lei. A vida é um valor maior, que se situa acima de querelas sociais, políticas e partidárias. A crueldade de sua morte nada fica a dever, porém, à do policial de Pernambuco. Dois pesos e duas medidas não podem ser aplicados, sob pena de se desacreditarem as próprias investigações. Ou uma mesma reação governamental federal deveria ter sido aplicada aos dois casos, ou caberia às respectivas polícias estaduais o esclarecimento desses crimes abomináveis. A captura e a punição dos respectivos responsáveis por esses dois assassinatos deveriam ser igualmente exemplares. O estado de direito se veria fortalecido e o Estado estaria cumprindo suas funções.
O que acontece, contudo? Há uma espetacular mobilização de ministros e de comissões para averiguar o que ocorreu no Pará. O ministro da Justiça declara que a repressão será "implacável"! Não deveria ser ela também implacável com os responsáveis - inclusive os seus cúmplices mais diretos - pela morte do policial pernambucano? Os ministros Nilmário Miranda, de Direitos Humanos, e Marina Silva, do Meio Ambiente, foram enviados pelo governo para acompanhar pessoalmente as investigações. Por que não foram eles enviados também a Pernambuco ou outros Estados da Federação onde o vandalismo do MST e o desrespeito ao estado de direito já se tornou regra? Será que a missionária americana é humana e os policiais brasileiros não o são? Qual é o critério de medida?
Os direitos humanos, na História da humanidade, foram formulados como uma espécie de metarregra que serviria para julgar as regras jurídicas e morais e, por meio destas, os diferentes casos particulares. Uma exigência de universalidade tomou conta dos juízos políticos, morais, jurídicos e religiosos, fazendo com que toda ação ou discurso devesse adequar-se a essa exigência. O sexo de uma posição, sua cor, sua religião e sua condição social passaram a ser vistos sob uma ótica universal, de tal maneira que os particularismos e as idiossincrasias passaram a segundo plano. A ninguém, hoje, ocorreria, por exemplo, negar direito de voto a uma pessoa por razões de sexo, religião, cor ou condição social, salvo se essa pessoa ou grupo social partisse de uma negação expressa do que a humanidade elaborou de mais elevado.
Entretanto, a validade dos direitos humanos depende de sua aplicação irrestrita, não admitindo nenhuma condicionante. Se os direitos humanos são aplicados a determinados casos e não a outros, a sua legitimidade se torna capenga. Eles não podem ser apropriados politicamente por determinados partidos ou movimentos sociais, na verdade políticos, que se arrogam essa pretensão. Se uma apropriação desse tipo ocorre, os direitos humanos cessam de ser universais para se tornarem particulares, ou seja, eles cessam de ser propriamente humanos. Se uma apropriação desse tipo ocorre, é porque houve uma usurpação dos direitos humanos.

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