terça-feira, fevereiro 22, 2005

O Estado de S. Paulo - Rubens Barbosa Alca - a hora da verdade


Depois de quase um ano, Brasil e EUA, na qualidade de co-presidentes da Área de Livre Comércio das Américas, voltam a se encontrar hoje, em Washington, para tentar desbloquear as negociações da Alca.

Alguns setores industriais e o setor do agribusiness acreditam que as negociações da Alca - e também do acordo Mercosul-União Européia (UE) - deveriam ser concluídas o mais rapidamente possível para evitar maiores prejuízos comerciais para o Brasil e para o País ser inserido nos fluxos de produção e investimento das empresas multinacionais. Alguns setores do governo, provavelmente por questões ideológicas, relutam em avançar com a Alca, preferindo concluir as negociações com a UE em primeiro lugar, antes mesmo do final da Rodada de Doha.

Nos últimos dois anos, os EUA mudaram sua estratégia na Alca. Houve três mudanças cruciais que alteraram o marco negociador: de multilaterais, as negociações se transformaram em bilaterais, antidumping e subsídios foram transferidos para a Rodada de Doha e produtos sensíveis (agrícolas em especial) ficarão excluídos da liberalização comercial.

Para ajudar a entender a complexidade e a delicadeza da retomada das negociações, procurei, da forma mais objetiva, resumir as principais posições dos EUA.

Os EUA estão pouco dispostos a fazer concessões em acesso a mercado à altura das expectativas do Mercosul, sobretudo na área agrícola. Não haverá, no período de transição, que deve durar mais de 15 anos, abertura plena do mercado norte-americano para produtos com altos picos tarifários e restrições não tarifárias, mesmo que haja concessões por parte do Mercosul em serviços e investimentos (em que, sem dúvida, há margem de negociação) e em regras, sobretudo em propriedade intelectual. Também não haverá nesse período redução substancial do subsídio doméstico.

O preço a ser pago para a liberalização parcial do mercado dos EUA é a aceitação de regras restritivas, que vão além da OMC, e a abertura do mercado do Mercosul para serviços, investimentos e bens industriais.

Os EUA já negociaram, ou estão em processo final de negociação, acordos de livre comércio com todos os países do Hemisfério (menos o Mercosul, a Venezuela e o Caricom), dentro de um modelo que inclui reduzida abertura de mercado para os produtos sensíveis (agrícolas, têxteis) e regras restritivas que vão além das aprovadas na OMC. O incentivo para esses países foi a perspectiva de tornar permanentes concessões temporárias renováveis anualmente pelos EUA.

Os EUA não têm interesse em negociar acordo de livre comércio com o Mercosul (4+1). Eles só aceitarão negociar com o Mercosul se for nos moldes do Chile ou dentro da Alca, pela razão simples de que, tanto num quanto noutro caso, já obtiveram a inclusão de regras OMC plus em serviços, investimento, compras governamentais e propriedade intelectual, foram aceitas restrições quantitativas (cotas) e mantidas tarifas altas para os produtos agrícolas.

A questão da implementação e do estrito cumprimento ("enforcement") da legislação interna para a Lei de Propriedade Intelectual é hoje, mais do que há um ano, um ponto central da negociação dos EUA. A aceitação do princípio do "enforcement" significará a possibilidade de retaliação cruzada em produtos exportados para os EUA.

Os EUA só aceitaram, como base da negociação, o documento de Miami de novembro de 2003 (que exclui as sensibilidades dos principais parceiros e permite uma Alca a duas velocidades) porque é suficientemente ambíguo e permite mais de uma interpretação e porque a proposta brasileira (minidenominador comum multilateral) não é aceitável para a maioria dos países do Hemisfério.

A Alca, nos próximos dez anos, terá pouco efeito nas exportações do Mercosul para os EUA porque 68% dos produtos importados pelo mercado norte-americano já gozam de tarifa zero (não necessitam da Alca), não têm restrições tarifárias ou não tarifárias, e porque os cerca de 30% de produtos com algum tipo de restrição (agrícolas) não serão liberalizados no período de transição.

Os acordos firmados pelos EUA com o México e o Canadá, com o Chile e com os membros da Comunidade Andina deverão erodir as margens de preferência negociadas pelo Brasil com os países da América e deverão exigir um esforço de (re)negociação dos acordos de livre comércio que o Brasil mantém com esses países.

Além da exclusão das negociações no âmbito da Alca dos itens antidumping e subsídios, que afetam diretamente interesses do Mercosul, em algum momento o governo norte-americano deverá incluir na pauta dos entendimentos a discussão sobre as cláusulas social e de meio ambiente e sua vinculação com sanções comerciais, no caso de não-cumprimento das disposições aprovadas internamente em cada um dos países.

As negociações da Alca, se bem-sucedidas, somente serão concluídas depois de 2006, após a votação pelo Congresso dos EUA da Lei Agrícola (Farm Bill) e a conclusão da Rodada multilateral de Doha.

Levando em conta o novo impulso das negociações multilaterais da Rodada de Doha, parece ser mais adequado aguardar a evolução dos entendimentos em Genebra antes de assumir compromissos regionais, ou mesmo bilaterais, com a União Européia, que criarão condicionalidades difíceis de ser aceitas pelo Brasil, tanto em acesso a mercado como na definição de regras. As duas negociações ficarão aquém de nossas expectativas mínimas de acesso a mercado e em alguns casos deverão amarrar nossas mãos nas negociações multilaterais que mais nos interessam, porque tratarão de nossas principais prioridades, como subsídios, antidumping e acesso a mercado.

O prejuízo comercial no Hemisfério poderá ser reduzido com a renegociação dos acordos com os países sul-americanos para eliminar a vantagem competitiva obtida pelos EUA nas negociações bilaterais.

Rubens Barbosa, consultor, presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da Fiesp, foi embaixador do Brasil nos EUA e na Grã-Bretanha


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