domingo, fevereiro 27, 2005

Jornal O Globo - Miriam Leitão País dos cartéis

Um funcionário da Secretaria de Direito Econômico se disfarçou. Fingiu ser um vendedor de planos de saúde. Bateu numa determinada porta em São Paulo. O desavisado segurança contou que, na semana seguinte, a casa estaria cheia de gente. No dia certo, com ordem de busca e apreensão, uma equipe da SDE pegou computadores, papéis, provas. Juntos, eles comprovavam que ali era a sede do cartel dos produtores de brita. O caso deve ser julgado na Justiça e no Cade nas próximas semanas.
O Brasil tem três produtores de vergalhão de aço: Belgo, Gerdau e Votorantim. Se alguém achar que eles atuam em cartel e têm preços abusivos poderá importar o produto? Poder, pode, mas tem que cumprir as seguintes exigências: o fornecedor lá terá que ter ISO 9000 e terá que registrar sua marca no INPI no Brasil e, além disso, o produto terá que ter uma especificação técnica de um tamanho que não é fabricado em nenhum país grande do mundo. O nome disso é barreira técnica. Com elas, os cartéis sobrevivem até na era da abertura.


No caso do vergalhão de aço, a SDE seguiu uma denúncia e abriu um processo. A investigação concluiu que os três dividiam clientes entre si e combinavam preço para que eles fossem cada vez mais altos. Enviado para o Cade, foi marcado o julgamento. No dia do julgamento, um juiz deu uma liminar, pedida pela Gerdau, impedindo o Cade de julgar.

Daniel Goldberg, o secretário de Direito Econômico, acha que esta é a melhor forma de enfrentar o problema crônico dos cartéis no Brasil: partindo para o ataque.

— Em vez de ficar apenas julgando 800 casos de fusão e aquisição por ano, o sistema de defesa da concorrência tem que ter também uma atuação agressiva contra os cartéis.

Ele chama isto de “inteligência concorrencial”. Com agentes da Polícia Federal treinados na própria SDE, com convênio com o Ministério Público em 26 estados, com escuta telefônica autorizada, astúcia e estratégia, Daniel está encurralando alguns dos muitos cartéis que existem há décadas no Brasil.

Aqui não é o país dos cartéis por acaso. O próprio governo, durante os longos anos da superinflação, tinha um órgão que empurrava a economia para a combinação de preços e conspiração contra a concorrência: o Conselho Interministerial de Preços. Até hoje, ainda há fatos exóticos, como o DAC impedir desconto nas passagens aéreas.

O mais espantoso, na opinião de Daniel Goldberg, é o que ele encontrou nas várias batidas que deu com a Polícia atrás das provas do crime. Ele disse que é tudo organizado, há normas nos cartéis, esquemas de punição para quem descumprir o combinado, há programas de computador adaptados para fazer a ação combinada, há até programas de motivação para que todos, juntos, não deixem o cartel morrer.

— Há duas notícias. Uma boa e uma ruim. A boa é que é possível pegar o cartel e provar que ele existe. A má é que nós nunca demos uma batida sem encontrar provas da existência de cartel — disse o secretário.

Uma das formas de pegar o cartel desenvolvida no atual governo foi a do “acordo de leniência”, ou seja, o integrante que denunciar o cartel tem uma redução ou anulação da pena. Empresas pequenas que são constrangidas de diversas formas — inclusive com uso da fiscalização de órgãos do governo — a aderir ao cartel, podem denunciar. A primeira denúncia a aparecer na Secretaria foi sobre empresas de vigilância privada. Houve mandado de busca e apreensão em quatro lugares e, depois de análise do conteúdo de 16 CPUs e 11.400 documentos, foi possível iniciar um processo contra 21 empresas, três entidades e 30 pessoas físicas. Há um caso que envolve multinacionais: White Martins, Air Liquide e Aga, Air products, Indústria Brasileira de Gases. Juntas produzem 99% dos gases industriais que são usados tanto na indústria de alimentação quanto em hospitais. O caso mais conhecido que partiu de uma investigação preliminar da SDE é o de hemoderivados, o da Operação Vampiro.

Essa nova forma de atuação de um dos órgãos de defesa da concorrência está produzindo o acúmulo de provas e de processos contra os cartéis e os seus responsáveis nas empresas brasileiras. O segundo passo vai ser dado agora: no mês que vem, vai para o Congresso um projeto de criação do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, um redesenho institucional que promete atualizar a ação antitruste no Brasil.

Daniel Goldberg fala com entusiasmo sobre o processo que, ao ser concluído, vai acabar com o emprego dele no governo:

— A SDE deixa de existir e passa a ser um braço do Cade. E, no Ministério da Fazenda, a Seae deixa de ser um órgão antitruste para se especializar na remoção das barreiras técnicas às importações, além de outras funções.

Se for aprovada, os casos de fusão e aquisição que serão analisados pelo órgão vão diminuir, os processos serão simplificados, as decisões mais rápidas. E haverá mais tempo para a atuação ativa contra os cartéis.

As histórias que ele conta são todas espantosas. O resultado da ação do órgão é inédito: nunca houve tanto cartel encurralado e tantas provas na mão da Justiça e do Cade como agora. Quem sabe, com ações assim, haverá um dia concorrência no cartelizado capitalismo brasileiro.

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