domingo, fevereiro 27, 2005

Folha de S.Paulo - Uma crise de 99 anos RUBENS RICUPERO - 27/02/2005



Completaram-se , ontem e hoje, 99 anos da reunião dos presidentes de São Paulo, Minas e Rio de Janeiro que culminou no Convênio de Taubaté. Primeira crise global do café, provocada pela triplicação da produção brasileira na década de 1890 (de 5,5 milhões a 16,3 milhões de sacas), a solução aventada foi sustentar os preços altos mediante a redução da oferta, que o Brasil controlava em cerca de três quartos.
O remédio acabou realimentando a doença. O preço estimulava a superprodução, no Brasil e nos concorrentes, enquanto o consumo crescia à taxa vegetativa de menos de 2% ao ano. Tem sido essa, com pequenas variantes, a história do café em um século.
Hoje, há 60 países exportadores, mas três, Brasil (33,7%), Vietnã (13,2%) e Colômbia (9,3%), respondem por mais da metade. O último capítulo da crise intermitente se desenrolou de 1997 a 2002, por haver dobrado a produção brasileira e devido à meteórica ascensão do Vietnã em robusta. A Unctad calculou que, se as cotações tivessem permanecido no nível de 1998, correspondente à média histórica, os produtores teriam tido renda adicional de US$ 19 bilhões entre 1999 e 2002.
Quer dizer, houve transferência de renda desse montante para as poucas firmas internacionais (de quatro a seis) que concentram o comércio e a torrefação. São elas que se apropriam dos ganhos de produtividade, sem que o consumidor final se beneficie do colapso do preço pago ao produtor. É essa a nova e alarmante desgraça do café, pois a volatilidade das cotações é fenômeno velho.
O produtor cada vez participa menos do valor agregado da cadeia do café. Em dez anos apenas, essa participação, que era de 36% a 38%, mergulhou para algo entre 6% e 8%! Apesar do desabamento dos preços, o valor total da cadeia passou de US$ 30 bilhões a US$ 70 bilhões de 1990 a 2000. Só que os agricultores recebiam, no início, US$ 12 bilhões de US$ 30 bilhões e agora mal chegam a US$ 5,5 bilhões de US$ 70 bilhões. O mais grave é que, diferentemente de crença generalizada, 70% da produção provém de 25 milhões de pequenos e médios agricultores. Os países mais dependentes da exportação de café (entre 60% e 80%) estão entre os mais pobres do mundo: Burundi, Etiópia, Ruanda, Uganda.
Não apenas no café mas em quase todos os produtos primários é impressionante a concentração vertical e horizontal em mãos de gigantes transnacionais e cadeias de supermercados. No Reino Unido, as quatro maiores cadeias varejistas representam 75% de todas as vendas de alimentos do país, inclusive vegetais frescos.
Graças à posição de domínio que exerce em mercados imperfeitos, o megacomércio assegura que a maior parte do valor agregado fique em mãos dos que manipulam o atacado e o varejo, depois que o produto deixa a fazenda. Na Califórnia, o consumidor paga US$ 3,99 por libra de ervilhas frescas, ao passo que o produtor na Guatemala recebe 18 centavos a libra (5%); as mangas vendidas por 99 centavos a libra rendem 8 centavos ao produtor.
A correção desse iníquo mecanismo de espoliação e transferência faria mais pelos pobres do mundo do que todos os programas de ajuda. É bom que os brasileiros iludidos pelo ufanismo ingênuo das exportações agrícolas, hoje um tanto já corroído pelas dificuldades da soja e do algodão, meditem essa dura realidade. Só assim compreenderão o que disse o professor Carlos Eduardo Young, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sobre esse tipo de atividade econômica que devasta a floresta, concentra a renda e o emprego e só agrega valor ínfimo a um produto sempre ameaçado pelas oscilações do mercado. Ela não é o futuro do Brasil. Ao contrário, conforme revela o papel do café na destruição da mata atlântica, na decadência do Estado do Rio de Janeiro e na herança das cidades mortas do Vale do Paraíba, ela não passa do seu triste e doloroso passado.

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