sexta-feira, fevereiro 18, 2005

EDITORIAIS O ESTADO DE S.PAULO O grande derrotado





Quinta-feira, 17 de fevereiro de 2005


É no mínimo fútil tomar liberdades com a verdade quando ela está à vista de todos. Por transgredir essa regra de elementar sensatez, o presidente Lula adicionou à fratura exposta do Planalto, causada pelo desfecho da eleição à presidência da Câmara, um desnecessário desgaste pessoal por haver querido negar o que todos viram e ouviram, desdenhando da inteligência do público - para não falar da sensibilidade dos políticos que passaram a estarrecedora madrugada da segunda-feira no Congresso.

Teria sido, de fato, não só digno, como também mais conveniente para o próprio Lula se na sua primeira manifestação pública, ainda no exterior, sobre a vitória do deputado Severino Cavalcanti, ele admitisse o óbvio: o governo, mais que o PT, foi quem perdeu - de goleada - a batalha pelo comando da principal casa legislativa do País. Estadistas fazem isso. E por essa derrota foi tão ou mais responsável do que seu partido. Mas o presidente preferiu recriar os fatos com enormidades do gênero "o governo não disputou; quem disputou foi o PT". Ou "(o resultado) é um problema interno da Câmara que não passa pelo governo".

Primeiro, não engana nem a um néscio a especiosa distinção, no caso, entre o governo e o partido que nele exerce - com métodos notórios - absoluta hegemonia, escalão debaixo de escalão. O governo do presidente Lula é tão visceralmente petista, apesar do punhado de ministérios em mãos de siglas aliadas, como o do presidente Bush é republicano. Segundo, o governo foi derrotado pelo que fez na enésima hora para eleger o seu candidato Luiz Eduardo Greenhalgh: armou um rolo compressor de 10 ministros, envolvendo assim a administração diretamente no "problema interno da Câmara".

Era o que precisavam os políticos adeptos do pragmatismo irresponsável para mostrar que têm, sim, brios - e só esperavam a deixa para dar o troco por não receberem do Planalto as deferências que lhes permitem se mostrar prestigiados e as verbas que forram o seu baú eleitoral. É sintomático que o deputado Severino tenha prometido aos seus pares mais do que salários e regalias: prometeu bater-se pelo Orçamento impositivo - não em benefício do desempenho financeiro da União, mas para que os deputados tenham garantidos os recursos das emendas que conseguirem emplacar na peça orçamentária aprovada.

Essa conjuntura deveria ter levado o presidente a indicar que entendeu o "recado das urnas", reconhecendo a responsabilidade do governo que dirige pela vitória severina. Pois não está nada certo que "as coisas vão continuar funcionando normalmente", como disse também. Se "as coisas" são o seu relacionamento com o novo presidente da Câmara, ele pode ter razão: o pernambucano que já declarou que o que o separa do conterrâneo é este ter vindo para o sul de caminhão, e ele num ita, não lhe fará oposição - desde que o Planalto e o PT não venham com projetos que afrontem o seu conservadorismo ultramontano.

Por exemplo, a liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias, prevista na Lei de Biossegurança proposta pelo governo para regulamentar os transgênicos, tem chance ínfima ou nula de ser aprovada na gestão severina, dados os amplos poderes de ordenação legislativa do presidente da Mesa. (É sua a última palavra sobre a designação de relatores fora das comissões e ninguém mais do que ele decide o que será votado no plenário ou engavetado.) A questão que Lula precisa dar mostras de ter entendido é que ele, como chefe do governo, é peça-chave no estabelecimento de "uma nova relação entre os partidos porque se quebrou uma cultura histórica na Câmara" (a maior bancada indica o presidente), como afirmou em Georgetown.

A relação se quebrou porque, decerto com o consentimento do presidente, o "primeiro-ministro" José Dirceu manipulou a vergonhosa prerrogativa da infidelidade partidária muito além do que exigiria a formação de uma maioria confiável. O troca-troca em ampla escala contribuiu decisivamente para enfraquecer a organicidade da Câmara. Parlamentos não funcionam ao deus-dará. Neles a política é regida por uma complexa estrutura de líderes e vice-líderes partidários, de bancadas estaduais e blocos, da maioria e da minoria. O sistema exige e proporciona o mínimo de coerência, disciplina e estabilidade.

Quando o governo faz disso tábula rasa, é como se avisasse: "Liberou geral." Deu no que deu. Agora que o feitiço virou contra o feiticeiro, cabe ao presidente da República, já a partir da reforma ministerial, inaugurar uma interlocução com os políticos que não se paute mais, em última análise, apenas pelo projeto da reeleição.

  • Publicadoem: Thu, Feb 17 2005 11:20 PM