O chefe da Casa Civil, José Dirceu, principal artífice da campanha municipal do PT e seu mais ativo cabo eleitoral entre os componentes do governo, já classificou a próxima eleição como uma preliminar para a reeleição de Lula em 2006. Ao mesmo tempo, ele acredita que em 2002 foi firmado um pacto entre o PT e a sociedade brasileira, que levou Lula à Presidência depois de três tentativas frustradas.
O cruzamento desses dois raciocínios mostra a importância para o governo de manter esse pacto político com a maioria da sociedade brasileira se quiser reeleger o presidente. Casos recentes de manifestação de tendências autoritárias ou dirigistas em setor sensível entre os formadores de opinião como a produção de informação, seja cultural, seja jornalística; ou de abuso de poder, como a quebra de sigilo bancário em série de 1.700 pessoas pela CPI do Banestado, podem colocar a perder esse terreno conquistado pelo PT.
Os números das eleições municipais de 2000, cruzados com os resultados das eleições presidenciais de 2002, mostram que a política brasileira continua sendo dominada pelos grotões, que por sua vez continuam dominados pelas oligarquias de sempre. Por isso não é surpreendente o amplo arco de alianças que o governo petista vem montando, tanto para conseguir governar com o Congresso, como para confirmar sua penetração nos chamados grotões, de onde provém o peso real do voto.
Dos 5.656 municípios brasileiros, segundo o IBGE, apenas 6% têm mais de 50 mil habitantes, e apenas 95 cidades têm mais de 150 mil habitantes, entre elas as capitais estaduais. Foi exatamente nessa faixa de eleitorado que o PT prevaleceu nas últimas eleições municipais: teve número de votos totais pouco menor do que os três maiores partidos brasileiros, que faziam parte da coligação governamental em 2000 e dominam 60% dos municípios brasileiros: o PMDB teve cerca de 13,258 milhões de votos, o PSDB, 13,519 milhões e o PFL, 12, 973 milhões, contra 11, 938 milhões do PT.
No entanto, em número de municípios, o PT ganhou apenas 185 prefeituras, ficando com 3,4% delas, contra 1.255 do PMDB, que tem o domínio de 22,5% das prefeituras brasileiras. Nesse mapa do interior do país, o PSDB, no poder em 2000, elegeu 992 prefeitos, ficando com 17,8% dos municípios. E o PFL elegeu 1.019 prefeitos, ficando com 18,3% das prefeituras. Isso quer dizer que mesmo tendo menos votos, o PMDB e o PFL ficaram com mais prefeituras que o PSDB, porque penetraram mais nos pequenos municípios. E o PT ficou confinado aos grandes centros urbanos.
Nada menos que 60% dos municípios brasileiros têm até 10 mil eleitores, e quanto menor o município, mais sujeito à influência política das máquinas partidárias, especialmente às ligadas ao governo federal. A última pesquisa de opinião CNT/Sensus, que mostrou um crescimento de 9 pontos percentuais na popularidade do presidente Lula, mostra também que não há ainda uma segurança de longo prazo quanto aos efeitos da recuperação econômica tão incensada pelo governo em sua campanha eleitoral.
Algumas perguntas sintomáticas mostram isso, como a série que indaga sobre rendimentos mensais e se a hora está boa para compras. As respostas ficaram mais ou menos no mesmo nível de junho. Mas quando se pergunta se a situação econômica melhorou nos últimos dois meses — pergunta feita pela primeira vez, não havendo portanto comparações — 65,8% dizem que não, o que desmente que a recuperação econômica tenha chegado à ponta, ao eleitorado.
Quanto à expectativa de melhora para o futuro, 45,8% acreditam que sim, e 40,3% acham que não vai melhorar, quase um equilíbrio entre as sensações. E quando se pergunta diretamente se a política econômica está no rumo certo, a resposta negativa subiu de 31,6 para 41,7%. A parcela dos que consideram que as promessas de campanha estão sendo cumpridas caiu de 57,7% para 36,7%. E os que consideram que elas estão sendo descumpridas passaram a ser maioria: de 34,1% a 55,2%.
Essa análise, que está sendo feita inclusive dentro do governo, mostra que a prudência defendida pelo senador Aloizio Mercadante tem sua razão de ser. Há sinais de melhora na economia, mas ninguém está apostando muito ainda nos desdobramentos a longo prazo. A melhora da avaliação tem um equilíbrio precário: Lula está apenas voltando ao ponto em que estava no início deste ano, que era uma avaliação positiva de 39,9%.
O grande crescimento da avaliação positiva do governo foi nas cidades de pequeno e médio portes, de 43,6%, onde o desemprego começou a cair com mais força. Nas capitais e nas regiões metropolitanas, essa avaliação foi de 35,4%. Os números estão a indicar que o governo Lula segue os mesmos passos de todos os governos: consolida-se como força no interior do país, e pode perder prestígio nas capitais e grandes cidades, exatamente pela mistura de decepção com pontos fundamentais não cumpridos, tanto na parte ética quanto na política.
Confirmada essa tendência, restará ao governo aprofundar suas alianças fisiológicas com partidos como o PMDB e o PTB, para garantir apoio político no interior. Terá que preservar o apoio de alguns representantes dessa política dos grotões que promoveram uma insurreição quase surda contra a candidatura de Serra à Presidência, e foram fundamentais para que Lula alcançasse nos grotões uma média de 33% na eleição de 2002, coisa que nunca teve nas eleições desde 1989.
O presidente do Senado, José Sarney, por exemplo, além da disputa pela sua reeleição, andou incomodado com o festival de quebras de sigilo bancário promovido pelo relator da CPI do Banestado, o petista José Mentor.
O ministro da Cultura, Gilberto Gil, em uma análise acurada sobre a crise dos últimos dias, classificou-a como “a volta do medo”, referindo-se à campanha presidencial, quando o mote do PSDB, ecoado pela atriz Regina Duarte, foi o medo de que o PT assumisse o governo.
Gil se refere ao medo do autoritarismo como sendo mais um lance eleitoral do que uma tendência que possa ser atribuída a ele próprio ou a Lula. Cabe ao governo provar, na prática, que não há razão para temores.
Publicadoem: Tue, Aug 17 2004 10:28 AM