domingo, abril 18, 2004

MERVAL PEREIRA Crise de identidade





A crise política que não abandona o governo tem suas raízes mais profundas no problema de identidade do Partido dos Trabalhadores. Na oposição, sem outra responsabilidade que não fosse tentar chegar ao poder, até mesmo às vezes caindo na tentação de manobras golpistas, como quando adotou o mote radical “Fora FHC” vindo do PSTU, ou quando quase aceitou como verdadeiro o Dossiê Cayman, o PT não se preparou para exercer o governo.

Sua cúpula, acertadamente, vislumbrou a necessidade de mudanças do discurso, e mesmo das práticas, para conseguir chegar à Presidência da República depois de três derrotas.

Mas não pôs essa mudança de posicionamento político em discussão dentro do partido. Por autoritarismo, ou por saber que não conseguiria convencer a maioria dos militantes.

Ou ainda, mais provavelmente, decidiu escamotear a mudança com um discurso dúbio na campanha eleitoral, para poder receber, ao mesmo tempo, os votos daqueles petistas que continuam querendo a ruptura completa, e os dos eleitores que, mesmo não sendo petistas, viam no novo e não tão radical Lula uma esperança de mudança.

Chegada ao poder com essa ambivalência na alma, a cúpula do PT continuou manipulando a maioria partidária, já agora adicionando aos seus poderes os poderes do governo, com o aparelhamento do Estado em troca do apoio político.

O PT, por escolha de sua cúpula, passou a ser um partido do Estado, o que pressupunha uma adesão incondicional às diretrizes governamentais. Como seus militantes, e principalmente seus deputados e senadores, não foram consultados sobre o papel de coadjuvantes de luxo do governo, as dissidências surgiram cedo.

O que parecia serem atitudes isoladas de um ou outro deputado ou senadora, logo mostrou-se uma divisão muito mais profunda. O deputado federal Chico Alencar, que faz parte da esquerda do PT mas não adere incondicionalmente às diretrizes do governo, acha que quem diz que partido hegemônico tem de ser solidário com o governo considera quase que exclusivamente as fortes razões do poder.

“Se é natural questionar o comportamento crítico do PT, cabe também analisar se o governo tem dialogado adequadamente com seu principal partido de sustentação, especialmente com sua instâncias principais, as bancadas no Senado e Câmara”, diz o deputado.

Lembrando o sociólogo italiano Norberto Bobbio, que dizia que “um diálogo não se faz com dois monólogos”, Chico comenta que “o pior é que nem isso sei se há: nós, deputados, estamos começando a deixar de formular propostas de consenso para levar ao governo. E o partido, quando o faz, é um Deus nos acuda”.

Chico reclama mais participação do partido nas decisões do governo, chamando a atenção de que parece caber ao partido, “no máximo, debater prolegômenos de uma reforma sindical, por exemplo. Sem certeza do que virá para o Congresso”.

A crise desencadeada pelas denúncias de corrupção do ex-assessor Waldomiro Diniz, que atingiram em cheio o chefe do Casa Civil, José Dirceu, destampou as insatisfações que existiam no partido e mesmo na base aliada do governo. A perda, que não se sabe se é permanente ou transitória, da capacidade de Dirceu de coordenar as ações políticas do governo exacerba ciúmes, estimula invejas e abre as portas para chantagens as mais variadas.

Mas também deixa aliados sérios sem capacidade de responder aos ataques da oposição e às desconfianças da opinião pública. A decisão do governo de barrar a todo custo o pedido de CPIs pode parecer a mais eficiente em termos práticos, mas só faz ampliar a percepção de que o PT, que na oposição queria CPI para tudo, era apenas uma farsa vendendo ao eleitorado uma imagem de pureza ética que nunca teve.

Há quem esteja incomodado, na base do governo, por exemplo, com as negativas pouco consistentes da Caixa Econômica Federal sobre a participação de Waldomiro Diniz nas negociações com a Gtech. E quando a oposição lembra que Eduardo Jorge, o ex-secretário-particular de Fernando Henrique, depôs no Congresso diversas vezes para rebater uma a uma as acusações, que acabaram provando-se falsas, não há como explicar que nem Waldomiro nem Dirceu aceitem falar ao Congresso.

Segundo Chico Alencar, “preocupações com transparência e ética são abafadas pelo dito realismo político, e quem insiste, como Suplicy ( senador Eduardo Suplicy, de São Paulo), é taxado de ingênuo ou olhado, de soslaio, como inconseqüente. Continua faltando humildade, franqueza e grandeza. E não é de nossa parte”, garante.

Na terça-feira à noite mesmo, quando falou em público pela primeira vez mais aprofundadamente depois da crise, o ministro José Dirceu garantiu que o partido continuará seus debates internos. Mas o grave é que o que Dirceu considera debate nem sempre coincide com a visão de outros setores do partido. A esquerda petista, por exemplo, realizará este domingo um “seminário de aprofundamento” em São Paulo, com economistas como Ricardo Carneiro (Unicamp) e cientistas sociais como Laura Tavares (UFRJ) fazendo um balanço da política econômica e social, para os quais os ministros Antonio Palocci, da Fazenda, e Patrus Ananias, do Desenvolvimento Social, foram convidados.

À tarde, os 15 deputados federais de dez estados que promovem o evento, coordenados pelo fundador do partido Plínio de Arruda Sampaio, avaliarão os rumos do PT. “A paranóia (ou fragilidade?) é tanta que não duvido que alguns companheiros vão considerar o seminário inoportuno”, comenta Chico Alencar, para arrematar: “Em tempos de crise, a razão costuma ser uma das primeiras vítimas”.18/4/2004