16/3/2004
O ataque frontal que a política econômica do governo recebeu ontem do presidente do Partido Liberal, deputado Valdemar Costa Neto, parece ser mais uma manifestação isolada em uma base política que carece de coordenação com a momentânea fragilidade do chefe do Gabinete Civil, José Dirceu.
Há, porém, quem ache que, muito ao contrário, é uma demonstração de que Dirceu voltou a operar politicamente, e ganha apoio às suas críticas à política econômica implantada pelo ministro Antonio Palocci. Se fosse esse o caso, Dirceu estaria jogando pesado demais contra seu próprio time, o que não é de seu estilo.
A maneira desabrida com que Waldemar Costa Neto referiu-se a Palocci mais parece uma irresponsabilidade, no máximo coadjuvada pelo vice José Alencar. Mas ela só tem repercussão política não pela qualificação do atacante, mas pela importância que o governo deu a seu inexpressivo partido.
Tornado ponto de referência política a partir do momento em que o então senador-empresário José Alencar foi escolhido vice-presidente da chapa de Lula, o PL só fez inchar depois da vitória, numa estratégia arquitetada por Dirceu para ampliar a base do governo, que agora pode se virar contra o seu criador.
Os partidos mais importantes da base parlamentar cresceram com as adesões insufladas pelo Palácio do Planalto, e hoje têm cacife suficiente para trazer problemas para o governo. O PL elegeu 26 deputados, e o seu parceiro de coligação, o Partido Social Liberal (PSL), seja lá o que isso quiser dizer, apenas um. Hoje, a coligação PL-PSL tem nada menos do que 45 deputados.
O Partido Popular (PP) elegeu 49 deputados e já incorporou mais cinco a sua bancada desde que apoiou o governo. A performance mais inacreditável foi a do PTB: simplesmente dobrou sua bancada, de 26 para 52 deputados.
Toda essa mágica da multiplicação dos deputados obedeceu ao planejamento estratégico do homem que realmente mandava na área política do governo, o capitão do time José Dirceu. A barriga de aluguel dos partidos aliados atendia ao mesmo tempo à vontade de ampliar o mais possível a base partidária do governo, e a preservação da “pureza ideológica” do PT, que elegeu 91 deputados e agora tem 90, apesar da saída dos deputados expulsos e de Fernando Gabeira, que abandonou em protesto a legenda.
Pois esse afã de montar a maior base partidária possível — chegou a ter o apoio de quase 400 dos 513 deputados federais, quando o PDT fazia parte dela — trouxe para dentro do governo problemas políticos que agora cobram seu preço. Fernando Henrique, no auge da popularidade, teve uma base de 340 deputados.
Os partidos mais problemáticos dessa base são o PL, o PP e o PTB, justamente os três que estão unidos para detonar a reforma política. PP e PTB já fizeram parte da base partidária dos governos de Fernando Henrique, e já ocuparam até mesmo ministérios anteriormente, mas nunca tiveram papel preponderante no governo.
O PL, que terminou na oposição contra Fernando Henrique, surgiu como solução para a composição de uma chapa que indicasse a mudança ideológica da candidatura de Lula à Presidência. Foi uma sinalização fundamental para garantir segurança a uma parte do eleitorado, mas trouxe irremediavelmente para o governo o vice José Alencar e suas desavenças, especialmente sobre a taxa de juros.
Indemissível, pois tem mandato, Alencar será uma pedra no sapato da equipe econômica até o fim deste primeiro governo de Lula. Tudo indica que a chapa para a reeleição terá outro candidato a vice-presidente, e as primeiras manobras apontam para a senadora Roseana Sarney, filha do presidente do Senado, José Sarney, que se tornou a principal âncora política do governo Lula. Hoje no PFL, o mais provável é que Roseana acabe no PMDB de Sarney.
Essa pode ser uma primeira explicação para a repentina agressão do presidente do PL ao ministro Palocci, a quem deseja ver substituído por ninguém menos que o vice José Alencar. A sugestão, feita no fim de semana em entrevista que passou despercebida para o meio político, não deve ter saído isoladamente da cabeça de Valdemar Costa Neto, conhecido no Congresso por não pregar prego sem estopa.
Necessidade de demarcar seu espaço político mais firmemente, aliada a alguma reivindicação fisiológica não atendida, são as melhores explicações para seu destampatório. O PL, além disso, vem passando por uma crise séria desde que o nome de um de seus mais importantes membros, o ex-bispo Rodrigues, apareceu envolvido com Waldomiro Diniz, o ex-assessor do Palácio do Planalto que cobrou propina para si e para candidatos do PT nas últimas eleições.
Os evangélicos, que dominam o PL, parecem temer que essas denúncias de corrupção afetem seus negócios na Igreja Universal do Reino de Deus, que também é alvo de constantes ataques. A maneira rápida como o Bispo Macedo, chefe da igreja, se desvencilhou de Rodrigues e vários outros bispos menos importantes, todos envolvidos em suspeitas de corrupção, demonstra a gravidade que o assunto tomou.
Os dois movimentos, embora separados pelas motivações, podem ter sentido político único na medida em que ajudam o PL a manter uma distância prudente do governo nesse momento de crise política. Prudente o suficiente para poder manter o ministério dos Transportes com o partido. E é nesse ponto que entra mais um ingrediente potencialmente desastroso nessa mistura de tendências políticas em que se transformou a base do governo.
A fragilidade da ação de coordenação das iniciativas políticas do governo está permitindo que surjam as mais desencontradas pressões, da direita e da esquerda do espectro de apoio parlamentar. Um tiroteio em campo aberto, e a qualquer momento alguém pode receber uma bala perdida como essa disparada a esmo pelo presidente do PL.