domingo, agosto 24, 2003
Miriam Leitão Hora de crescer
Estabilidade é fundamental como pavimentação. Por isso, a luta primeira de qualquer governo sério tem que ser conquistá-la ou preservá-la. O ex-presidente Fernando Henrique comandou a conquista. O presidente Lula e seu ministro da Fazenda preservaram o patrimônio num momento de dúvidas e apostas contrárias. As implicâncias de parte a parte dizem pouco da grandeza dessa corrida de revezamento entre líderes de partidos diferentes. Mas o fato é: não se cresce na inflação. Todas as vitórias dos últimos anos — novos modelos de gestão, aumento da produtividade, novos valores corporativos, debate sobre inclusão — vieram após a redução da inflação. Aquela loucura de antes cegava. O Brasil cresceu a taxas altas até o ano de 1980. De 81 a 93, cresceu apenas 1,6%. Não por coincidência, o pior momento da inflação. Nos anos seguintes, cresceu 2,7%. Mais do que nos anos anteriores e muito menos do que a taxa histórica.
Os juros são altos demais e tornam o ambiente hostil ao investimento. Estão altos por razões conjunturais, e caem ao longo dos próximos meses. Mas o problema é enfrentar as razões estruturais. O que faz com que os juros sejam tão altos no Brasil? A pergunta feita por Pérsio Arida, ao receber o prêmio Economista do Ano, é um convite a que se pense em todos os detalhes desse enigma paralisante.
A dívida pública é alta e isso é, sem dúvida, uma das razões para juros tão altos. Outros países, no entanto, têm dívidas até maiores e juros menores. Não há invenção possível: é pagar a dívida porque ela é a poupança dos brasileiros. Mas reduzi-la é essencial porque hoje a dívida atrai todo o dinheiro que poderia estar em outros projetos, em investimentos, no mercado de capitais. Os novos produtos financeiros vão se fortalecer quando o Estado deixar de drenar tantos recursos para seus títulos. Aqui, pode se formar um círculo virtuoso: menos juros, menor a dívida, mais recursos liberados para oxigenar a economia. Mas o problema é que, quando os juros caem abaixo de determinado ponto, põe-se em risco a estabilidade. Esta é a pedra no caminho.
A produtividade foi a força que empurrou a economia para o pequeno crescimento dos últimos anos. A taxa de investimento caiu, mas a produtividade aumentou, fazendo a economia avançar. Mas é fundamental agora garantir o aumento do investimento.
Do Banco Central, Altamir Lopes continua de olho nos números do investimento direto estrangeiro. E disse esta semana, olhando os dados de julho, que eles estão voltando: deu US$ 1,2 bilhão. Mas a volta dependerá da criação de regras estáveis e dissipação de todos os temores que se formaram nos últimos meses. Regulação estável é pressuposto do investimento privado, seja estrangeiro, seja nacional. O governo promete para esta semana a divulgação de um marco regulatório, uma espécie de moldura dentro da qual os setores serão regulados. Há erros nas agências, sem dúvida. Mais errado foi o governo iniciar o ataque a elas. Espera-se que o marco regulatório dê confiança a quem quer investir. Não é apenas o Executivo o responsável pela criação de um clima favorável ao investimento. O risco jurídico do país no Brasil é uma das razões da incerteza regulatória.
A informalidade atrapalha de diversas formas: reduz a arrecadação, desestimula o setor formal, diminui a produtividade da economia. Quem tem batido nesta tecla é José Alexandre Scheinkman, professor de Princeton. Ele acha que a reforma tributária desperdiça a chance de incentivar a redução da informalidade. E quanto mais entrarem no reino dos pagantes, menor pode ser a carga tributária sobre quem paga.
A pobreza e a desigualdade são temas de estudo constante de vários e excelentes economistas, felizmente. O caminho já está mapeado: rever incentivos e benefícios, porque eles são hoje apropriados pela elite. Ter políticas públicas eficientes, focadas, avaliadas. E antes e depois de tudo: educação! Inclusão é a única estratégia aceitável para o crescimento brasileiro. O desemprego precisa ser enfrentado com olho no futuro e não com a obsessão pelo passado getulista.
Não é possível mais adiar o encontro do país com a necessidade de ter um sistema financeiro de habitação que funcione, que permita aos pobres ter casas decentes — subsidiadas, porque é para isso que existem os subsídios — e que atenda ao sonho da casa própria da classe média como fonte de novos produtos financeiros. A construção e tudo o que ela envolve cria círculos virtuosos e é forma de dar emprego a quem tem pouca qualificação.
Exportação é fundamental e, na balança, a agricultura tem sido campeã. Aqui, o erro a evitar é proteger, escolher e subsidiar setores que supostamente puxam o crescimento. E o país, vez por outra, está flertando com este erro. É preciso aumentar o volume de comércio. Mas não sem antes rever a ilógica logística deste país continental.
Com vários bons estudiosos brasileiros, tenho aprendido que o caminho de retomar o crescimento não é fácil, mas não é impossível. Estas aqui relacionadas não são as únicas barreiras ao crescimento. São as que couberam neste espaço. O país tem muito trabalho pelos próximos anos e décadas para garantir mais crescimento nestes próximos anos e décadas.
sábado, agosto 16, 2003
Diogo Mainardi Varig e TAM
"O fato mais curioso na fusão da Varig
com a TAM é que ninguém sabe direito
quanto o governo federal irá gastar.
Li que o BNDES ofereceu à empresa
um empréstimo-ponte de 700 milhões
de dólares, porém o presidente
do banco não confirma"
As aeromoças da Varig encheram-me de mensagens na última semana. Uma delas me elevou à condição de "defensor da democracia". Outra me atribuiu "grande prestígio entre os leitores". O meu ponto fraco é a adulação. Basta falar bem a meu respeito que eu cedo. Ainda mais quando se trata de aeromoças. Elas querem que eu me manifeste contra a fusão entre a Varig e a TAM? Então eu me manifesto: sou contra. Se tivessem pedido uma manifestação a favor, eu teria me manifestado a favor.
De todas as mensagens enviadas pelas aeromoças da Varig, as de gosto mais duvidoso foram aquelas com recortes de jornal relatando acidentes com os Fokker da TAM. Falam de "fuga de fluido hidráulico", de "fogo no trem de pouso", de "falha no auto-throttle", de "abertura da porta lateral". As aeromoças da Varig mandaram-me também misteriosas mensagens em código: RESTRICAO DE 20 PAX INF DESPACHANTE DVD *CHUVA* EMCWB PT ACFT DEP POA COM 57 PAX TOT PT. O que significa?
As aeromoças e os pilotos da Varig, pelo que entendi, querem usar seus créditos trabalhistas para comprar a companhia, mas o governo federal insiste em fundi-la com a TAM. A proposta dos funcionários da Varig parece ter uns buracos. Inclui investimentos do BNDES, só que o BNDES é favorável à fusão com a TAM. Os funcionários também contam com a participação do fundo de pensão Aerus, embora o diretor do instituto já tenha avisado que não quer saber do projeto, inclusive porque é ilegal.
O sindicato das aeromoças e dos pilotos da Varig é filiado à CUT. Eles se arrependeram de ter votado em Lula. Entupiram-me de mensagens sobre os 600 quilos de bombons encomendados pelo Palácio do Planalto. O principal interessado na fusão entre a Varig e a TAM, segundo as aeromoças, é José Dirceu. Se José Dirceu é a favor de uma coisa, eu sou contra. O problema é que o único aliado que as aeromoças da Varig conseguiram encontrar até agora foi o senador Marcelo Crivella. Eu não quero ser visto em sua companhia.
O fato mais curioso na fusão da Varig com a TAM é que ninguém sabe direito quanto o governo federal irá gastar. Li que o BNDES ofereceu à empresa um empréstimo-ponte de 700 milhões de dólares, porém o presidente do banco, Carlos Lessa, negou-se a confirmar o número, alegando "segredo bancário". As companhias aéreas pleiteiam ajuda estatal porque foram prejudicadas pelo 11 de setembro. A Lufthansa também foi, mas acaba de anunciar um lucro de 400 milhões de dólares para o ano que vem. A Varig e a TAM também reclamam da desregulamentação do setor aéreo brasileiro. Qual desregulamentação? Desregulamentação foi o que aconteceu na Europa. O resultado está aqui na minha frente, no jornal. A Ryanair oferece passagens da Itália para a Inglaterra por menos de 25 dólares. E da Itália para a França por menos de 20. Para desregulamentar de verdade, o Brasil, antes de mais nada, deveria vender os aeroportos e fechar a Infraero.
A PanAm faliu. A TWA faliu. A Swissair faliu. Por que a Varig ou a TAM não podem falir? É a regra básica da economia: empresas mal administradas fecham as portas. Espero que as aeromoças da Varig estejam satisfeitas comigo.
sábado, agosto 09, 2003
Diogo Mainardi A van da literatura
"Qualquer um pode escrever um livro.
Duro mesmo é ficar no sofá, sem escrever
nada. Não escreva. Se realmente tiver de
escrever, trate o resto da humanidade aos
tapas e pontapés"
Ivan Lessa é o maior escritor brasileiro. Só que o Brasil é tão desgraçado que nosso maior escritor nunca se interessou em escrever um livro. Preferiu dedicar-se a não escrever. É muito mais difícil não escrever do que escrever. Qualquer um pode escrever um livro. Qualquer um pode publicá-lo. Duro mesmo é ficar deitado no sofá, sem escrever nada. Requer uma aceitação filosófica da própria transitoriedade. Requer o desprendimento de um sufi. Ivan Lessa resumiu sua determinação de não escrever da seguinte maneira: "Que nossa presença seja leve aos outros, ocupados com seus mistérios e empombações. Falemos baixo".
Eu escrevi livros. Um monte de livros. Cheios de mistérios e empombações. Quem melhor definiu minha carreira literária foram os humoristas do Casseta e Planeta. Alguns anos atrás, contaram que um assassino, fugindo da polícia, escondeu-se dentro de um dos meus romances, o único lugar que ninguém jamais abriria. No domingo passado, o mesmo Casseta e Planeta voltou ao assunto e retratou-me nos fundos de uma van, a caminho de um festival de literatura em Parati, amolando o tempo todo meus companheiros de viagem, Luis Fernando Verissimo, Arnaldo Jabor e Marilena Chaui. Acontece que agora eu não escrevo mais. Desci da van literária. Como um alcoólatra numa reunião do AA, um dia me levantei da cadeira e jurei que nunca mais escreveria um romance. Há seis anos, quatro meses e duas semanas não faço uma linha de literatura. De tempos em tempos, sou tentado a retomar o hábito, sobretudo depois da noite de autógrafos de algum amigo. Ivan Lessa já disse que o único bom motivo para escrever um livro é irritar os amigos. Ele disse também que amigos custam um dinheirão e, ao contrário de liquidificador, não vêm com garantia. Bem melhor que ter um amigo é ter um conhecido no pub.
Conheci Ivan Lessa em Londres, em 1981. Todas as quartas-feiras almoçava com ele num restaurante chinês no centro da cidade. Ele sempre me levava três livros, dentro de um saco de supermercado. Eu lia tudo e devolvia na semana seguinte. Para ler os livros que ele me emprestava, fui negligenciando os estudos universitários na London School of Economics, até largá-los definitivamente, no fim do 1º ano. Em sua recente passagem por Londres, Lula recebeu uma homenagem da London School of Economics. O reitor chegou a chorar. Eu já era grato a Ivan Lessa por ter sabotado minha carreira estudantil. Depois da homenagem a Lula, fiquei duplamente grato. Embora eu não devesse falar desse jeito. Era divertido debochar do Lula nas primeiras semanas de governo, quando ninguém debochava dele. Agora todo mundo debocha, até o Casseta e Planeta.
Aprendi muitas coisas com Ivan Lessa. Algumas delas, só entendi recentemente. Isso de não sair escrevendo um romance atrás do outro, para mim, foi uma conquista difícil, que precisou de muito esforço e muita autoflagelação. Como nem todo mundo teve a sorte de ter um tutor como Ivan Lessa, estou passando adiante suas lições aqui, agora, de graça. Lição número 1: não escreva. Lição número 2: se realmente tiver de escrever, "trate o resto da humanidade aos tapas e pontapés".