terça-feira, setembro 27, 2011

Memória diplomática Rubens Barbosa



O Globo - 27/09/2011
 

A preocupação com a preservação da memória de fatos e de momentos históricos no Brasil ainda é incipiente e não merece a atenção dos que militam na vida pública ou mesmo na atividade privada. Poucos são os relatos existentes de personalidades que poderiam dar um testemunho relevante nesse sentido.
Não há uma contribuição significativa no gênero de autobiografias ou de relatos de participantes que tiveram algum papel na política, na economia ou na diplomacia para melhor entender a ação de personagens ou para conhecer diferentes percepções da formulação de políticas públicas. E também - por que não? - ficar sabendo de histórias curiosas e às vezes picantes dos bastidores dos centros de poder.
Durante quase cinco anos como embaixador em Washington, registrei, de forma sistemática, os principais acontecimentos em que estive envolvido, direta ou indiretamente, ou em que acredito ter tido algum tipo de influência.
Com esses elementos informativos, decidi publicar um depoimento sobre o trabalho transcorrido em um período especialmente movimentado da vida diplomática na capital dos EUA.
O "Dissenso de Washington", que será lançado hoje, na livraria da Vila, em São Paulo, procura retratar o panorama das relações entre o Brasil e os EUA e os principais temas regionais e globais, vistos a partir daquele posto de observação. O livro busca também sintetizar os conflitos políticos domésticos na dividida sociedade norte-americana e descreve os muitos desencontros dos EUA em relação ao Brasil e à América Latina na primeira metade da década inicial do século XXI.
Nem sempre o trabalho de um embaixador, nos postos de maior visibilidade política e diplomática, coincide com acontecimentos especialmente marcantes na história do país onde está acreditado e também de seu próprio. No período em que trabalhei em Washington, de 1999 a 2004, pude presenciar as eleições presidenciais com vitória do partido oposicionista, tanto nos EUA quanto no Brasil, os ataques de 11 de setembro e a eclosão das guerras no Afeganistão e no Iraque.
Também vivi a excepcional experiência de acompanhar de perto um longo período do relacionamento entre o Brasil e os EUA como embaixador dos presidentes FHC e de Lula, em governos que desenvolveram políticas externas bem distintas, o que, por vezes, acarretou desencontros no entendimento entre os dois países.
Em conversas informais com os embaixadores dos principais países aliados dos Estados Unidos, como Reino Unido, França, Alemanha e Japão, ou mesmo de países rivais, como a China, podia se perceber claramente que as questões e os temas de política internacional tratados por eles com o governo americano eram de um nível a que o Brasil ainda não tinha acesso.
A maior exposição externa nos últimos anos já indicava que o Brasil tinha potencial enorme, não só para destacar-se como coadjuvante, mas para ser atuante em qualquer questão na América Latina, e em outros assuntos econômicos e políticos internacionais, como ocorre nos dias de hoje.
Devido ao crescente envolvimento nas questões globais, intensificou-se a participação brasileira em alguns assuntos de nosso interesse, como comércio, energia, meio ambiente, mudança de clima, agricultura e integração regional, questões que estão hoje no topo da agenda internacional. Atualmente, e cada vez mais, a voz do Brasil se faz ouvir.
Como resultado de todas essas experiências, os quase cinco anos passados em Washington reforçaram minha convicção de que a nossa relação bilateral mais relevante é com os EUA, apesar das oportunidades perdidas pelo Brasil. A importância dos EUA, evidentemente, não exclui a necessidade de intensificar a aproximação com outros países, muito menos deixar de lado nossos interesses maiores. A defesa do interesse nacional e o respeito mútuo devem dar o tom do relacionamento entre os dois países.
Com essas notas, que fiz na condição de observador privilegiado, espero deixar minha singela contribuição para nossa memória diplomática.
RUBENS BARBOSA foi embaixador em Washington e é presidente do conselho de comércio exterior da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo.