domingo, setembro 04, 2011

Crônica de um tempo difícil Fernando Henrique Cardoso

- O Estado de S.Paulo
Às vezes me dá vontade de ser mais cronista do que articulista.
Explico-me: espera-se de um articulista que argumente lógica e
concatenadamente sobre um assunto qualquer. Já o cronista pode
divagar. Estou ficando cansado de argumentar, e com mais vontade de
discorrer sem pretensões do que ter de demonstrar a lógica de meus
argumentos.

Começo por fazer uma confissão. Na quinta-feira, dia 1.º de setembro,
depois de um prazeroso almoço com bons amigos que ainda se dão ao
trabalho de continuar a celebrar meus já batidos 80 anos, cheguei ao
instituto às 5 e meia da tarde. Recebi um antigo colaborador e amigo
que não via há muito tempo (por sinal, hoje general do Exército) e,
ainda, me dispus a mostrar-lhe a exposição sobre o Brasil de antes e
depois do Plano Real que o acervo do iFHC preparou para servir às
novas gerações e, quem sabe, despertar o interesse de algum
pesquisador. Às 7 da noite, terminada a visita à exposição, recebi um
recado de uma das minhas assessoras: não me esquecer do artigo para o
primeiro domingo de setembro!

Mais grave ainda: devia sair de casa para o aeroporto na sexta-feira
às 7 e meia da manhã para ir a Montevidéu, a convite de meu amigo o
ex-presidente Julio Sanguinetti. Que fazer? Tinha em mente dois temas
para este domingo. Algumas reflexões sobre a crise da economia dos
países ricos e a nossa experiência em lidar com a questão ou, algo
mais quente, os limites da "faxina" da presidente Dilma Rousseff e
minhas declarações a esse respeito. Temas sérios. Confesso, faltou-me
energia para discutir a fundo essas questões em duas horas - que era o
que me restava -, embora não me faltasse apetite para dar alguns
palpites como cronista (sem querer ofender os brios dos verdadeiros
cronistas).

Vamos lá. Primeiro, a crise financeira deles e o nosso "legado",
palavra pretensiosa e tão mistificadora como a expressão que andou na
moda, herança maldita. No caso dos países ricos, é indiscutível, o que
causou a crise foi mais o desregramento do sistema financeiro e a
crença cega nas autocorreções do mercado do que a gastança
governamental, a crise fiscal, embora esta exista também. Em nosso
caso, foram as agruras nas contas externas e, sobretudo, as
especulações contra a moeda nacional - o "contágio" -, acrescidas,
também, de fragilidades fiscais. Lá, como aqui, com as mesmas razões
ou sem razões aparentes, as agências avaliadoras de risco
desempenharam papel importante para desencadear dúvidas sobre a
liquidez e a solvência.

Mas param por aí as similitudes. Nem tínhamos a possibilidade de
picotar e transformar as hipotecas em "derivativos", pois o crédito
imobiliário era pequeno, nem de empurrar para o Banco Central o
desastre financeiro dos bancos e quejandos. Entre nós, também houve
alguma "socialização das perdas", isto é, o Tesouro (eu, você e todos
os contribuintes) acabou pagando algo dos desatinos dos banqueiros e
especuladores. Mas em pequena proporção: o grosso foi pago pelos
próprios banqueiros audaciosos. Tiveram seus bens indisponíveis e
perderam seus bancos. Isso foi o Proer. E os bancos públicos
estaduais, quando governadores tomavam dinheiro emprestado e não
pagavam, foram privatizados ou fechados. Nesses casos também houve
algum aumento da dívida pública federal, justificável para barrar de
vez a possibilidade de desregramentos futuros. Isso foi o Proes.

Nos Estados Unidos e na Europa, o que vemos? Inundação de dinheiro
público via bancos centrais para salvar o sistema financeiro, sem
nenhuma penalização dos responsáveis e, ainda por cima, cortes
drásticos nos orçamentos, sem aumento de impostos, fazendo com que os
menos aquinhoados paguem os desvarios dos mais ricos! Pior: tudo isso
sem que a economia retome o seu dinamismo. Na Europa, um
empurra-empurra para ver se algum país paga pelos empréstimos que seus
bancos fizeram aos países ora em penúria ou se o Banco Central Europeu
- quer dizer, todos - vai pagar. Sempre, além disso, há cortes
drásticos no orçamento para pôr as contas fiscais em ordem. Resultado:
poucas chances de crescimento nos próximos anos. Dá para entender?

Quando daqui gritávamos contra a desregulação - cheguei a apoiar a
Taxa Tobin, um imposto sobre as transações financeiras internacionais,
que quase todos os economistas condenam, para criar um fundo de
solvência dos países endividados -, vinham-nos com a mesma receita:
aperto fiscal e nada mais, salvo um ou outro empréstimo do Fundo
Monetário Internacional (FMI) quando a situação já era desesperadora.
Quem com ferro fere com ferro será ferido.

A confusão, agora, é "deles" e, como é "deles" e não há mais eles sem
nós, barbas de molho, porque a recessão em marcha acabará por nos
atingir. Enquanto isso, os sonhos de um G-20 ativo tratando de regular
o mercado financeiro morre na praia. Não aprenderam nossa lição: além
do apregoado aperto fiscal, seguimos as regras da Basileia, isto é,
nosso Banco Central pôs freio à especulação e à irresponsabilidade no
sistema financeiro, desde os tempos do Proer e do Proes. E não
descuidamos de ter um Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e
Social (BNDES) ativo nem dos programas de transferência de renda para
os mais pobres e de aumentos reais do salário mínimo desde 1994 até
hoje.

Em contrapartida, deveríamos aprender com os países ricos que com
corrupção pública não se deve brincar. Na Alemanha, o grande
consolidador da União Europeia, Helmut Kohl, pagou alto preço por não
querer dizer quem o ajudou em eleições e, recentemente, um importante
ministro foi demitido por denúncia de plágio acadêmico. Assim, agora
que se começou a falar em faxina, creio que devemos apoiar as
iniciativas nesse sentido - desde uma CPI até os atos da presidente,
estimulando-a a ir mais longe -, sem deixar que o governo ou um
partido, mesmo que de oposição, se apodere da bandeira da moralização.
Isso seria logo visto como manobra política e perderia apoios na
sociedade, que se cansou de tanta impunidade.

Daí a pensar, como alguns pensam, que estamos querendo apoiar governos
ou ficar bem na foto, é desconhecimento das reais motivações ou
insensatez de quem não vê mais longe: as forças da corrupção estão
mais enraizadas no poder do que parece. Sem tática, persistência e
visão de futuro, será difícil barrá-las.