segunda-feira, abril 25, 2011

A burca LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SÃO PAULO - 25/04/11

Você é contra ou a favor da lei francesa que proíbe o uso de burca e
niqab em público? Eu sou a favor!

VOCÊ É contra ou a favor da nova lei francesa que proíbe o uso da
burca e niqab (véu que só deixa os olhos de fora) em espaços públicos?
Alguns consideram essa lei parte da islamofobia. Outros, manipulação
demagógica de Nicolas Sarkozy para ganhar votos da direita xenófoba.
Outros ainda fazem "conta" de quantas muçulmanas usam burca ou niqab
hoje na França, como se a questão fosse parada no tempo e não
implicasse a mobilidade de hábitos privados e públicos que se dá ao
longo do tempo e não numa estatística congelada.
Outros veem nesta lei um ato de intolerância com hábitos religiosos e
opinam que as pessoas devem ter o direito a seus hábitos religiosos.
Eu também acho que devemos ter direito a nossos hábitos religiosos,
mas a coisa é mais complexa do que simplesmente "eu acredito em Jesus,
você em Elvis, ela em ET, ele em Maomé, mas podemos ser amigos, tá?"
Outra coisa que me chama atenção é que muita gente, que é contra a lei
porque a considera um preconceito contra o islamismo, não teria
pruridos em defender a retirada do crucifixo dos prédios públicos ou
mesmo de criticar duramente hábitos cristãos no ocidente. Qualquer um
pode falar mal do cristianismo e do judaísmo porque pega bem, mas
emitir qualquer juízo com relação às outras religiões fica parecendo
preconceito.
De minha parte, sou a favor da lei francesa e acho que, sim, não se
deve permitir o uso de burcas e niqab (e orações no meio da rua) em
países que buscam o convívio secular como modo de vida legítima.
A "substância" que sustenta minha simpatia pela lei francesa vem de
longe. Vem de Israel e da experiência razoável que tenho por conta de
ter vivido naquele país por duas vezes e de ter ido lá desde 1980
inúmeras outras, além de conhecer muita gente de lá, e de parte dessa
gente ser de profissionais da área acadêmica e intelectual.
Há um significativo crescimento da população ortodoxa em Israel nos
últimos anos. Digo "ortodoxa" de maneira genérica para falar de
pessoas que pressionam a sociedade como um todo no sentido de aceitar
preceitos religiosos como leis e regras de conduta social. Ortodoxia
aqui é sinônimo de radical.
A luta em Israel contra as pressões dos religiosos radicais sobre o
cotidiano dos não religiosos (seculares) tem sido árdua. Sempre fui um
fiel defensor de uma Israel secular, com todas as contradições que
isso implica. Adoro Israel e não quero vê-la na pele de uma horrorosa
teocracia.
Além do ódio que os árabes nutrem contra Israel (mesmo que ingênuos
achem que não), há mais um agravante no caso israelense porque sua
fundação como Estado judeu implica uma identidade que sempre resvala
em crenças religiosas.
Não há nenhuma forma fácil de sustentar a identidade judaica ao longo
dos séculos sem o amparo da crença religiosa como critério de
convivência, de casamento e de criação dos filhos.
Sem a crença religiosa, qualquer "limite" imposto ao critério de
escolha para uma "convivência judaica" resvala no risco de mera
discriminação cultural ou racial.
E o que isto tem a ver com minha simpatia pela lei francesa? Tudo a ver.
Grande parte dos muçulmanos não pratica bem a separação entre religião
e sociedade ou Estado, assim como "seus irmãos" ortodoxos em Israel. E
esses caras não valorizam em nada a ideia de "tolerância". O que os
mantém "quietos" é ser minoria.
O crescimento da população islâmica na França tem que ser pautado por
um "limite prático" contra a invasão do espaço público por regras
religiosas.
Recentemente, uma jovem muçulmana francesa, citada nesta Folha,
criticou a lei porque "confundia coisas do governo com coisas de Alá".
É uma prova cabal de que essa moça não sabe o que é secularismo e
precisa aprender: não há "coisas de Alá" quando falamos de leis ou
regras públicas na França.
Não se trata apenas de mal-estar com o crescimento do islamismo na
Europa, se trata de mal-estar com a presença pública de formas do
fundamentalismo religioso.
O problema não é a mulher sob a burca, mas o forte viés teocrático que
cobre essa mulher com a burca.