sábado, fevereiro 26, 2011

ENTREVISTA - JOÃO UBALDO RIBEIRO

Folha de S Paulo

A literatura nunca vai perder sua força criativa

O escritor baiano, que prepara novo romance, fala sobre a velhice e a antiga polêmica com a Flip, onde vai receber homenagem pela carreira


Tomas Rangel/Folhapress

O escritor João Ubaldo Ribeiro em sua casa no Leblon, no Rio

DANIEL BENEVIDES
ENVIADO ESPECIAL AO RIO

Confirmado: Sargento Getúlio, Barão de Pirapuama e a misteriosa senhora CLB estarão na próxima Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), que acontece entre 6 e 10 de julho.
Quem falará por eles é seu criador, João Ubaldo Ribeiro, que acaba de fazer 70 anos. O escritor mora numa cobertura no Leblon, de onde sai muito pouco, geralmente para encontrar amigos, como Rubem Fonseca.
Passa a maior parte do tempo num refúgio refrigerado, onde, envolto por livros e um silêncio que garante a concentração, encara a tela de um computador.
Foi nesse escritório que João Ubaldo recebeu a Folha para uma entrevista. Numa conversa franca e simpática, entremeada por comentários divertidos e algumas boas risadas, revelou que já tem um novo romance na cabeça, falou de seu métodos de trabalho e da carreira bem-sucedida -tem dois Jabutis, por "Sargento Getúlio", em 1971, e "Viva o Povo Brasileiro", em 1984, e um Camões, recebido em 2008.
Falou também sobre a Flip, assunto que rendeu desentendimentos em 2004, quando retirou seu nome do evento, por considerar-se desprestigiado diante de outros convidados e por considerar a festa "uma realização voltada para autores da Companhia das Letras".
Um pouco desconfiado da própria memória, disse nunca ter sido convidado novamente, até agora. De qualquer forma, tanto o popular autor de "A Casa dos Budas Ditosos" quanto a Flip mostraram-se avessos a realimentar a polêmica.



Folha - É verdade que o senhor já tem um romance novo na cabeça?
João Ubaldo Ribeiro-
Sim, mas antes de começar a escrever tenho de administrar meus compromissos. Não se pode interromper um romance, senão desanda. E perder o livro acontece muito, não só comigo. Você larga o livro três dias e quando volta não encontra mais os personagens, perde o contato.

O que mudou para o senhor para aceitar o convite da Flip, depois da confusão em 2004?
Nada, nunca bati a porta, apenas me trataram condignamente, como qualquer outro. Não quero ser estrela, só não quero ir na rabada dos etcs., pois não sou um iniciante. É a primeira vez que me convidam depois daquele episódio. E provavelmente vou gostar, apesar de não ter mais saco para viajar.

O que aconteceu afinal?
Tive a desinteligência de reparar que meu nome era raramente divulgado entre os convidados, aí eu decidi não ir. No release aparecia "fulano, fulano, fulano e outros".
Esse "outros" era eu. Aí eu disse: outros o caralho! De qualquer forma, não foi nenhuma briga.

Muda algo fazer 70 anos?
Fazer 70 é melhor que não fazer, é óbvio. Eu tendo a partilhar a observação de meu amigo Jorge Amado, que dizia: "Compadre, já me falaram muito das alegrias da velhice, mas ainda não me apresentaram nenhuma" (risos). Eu talvez tenha algumas, um maior desapego a certas convenções.
Não chego ao ponto de dizer que a alegria da velhice é poder peidar em público, mas é algo deste jaez, talvez menos escatológico.

Talvez tenha ficado mais fácil escrever.
Não. Apesar de manejar bem a técnica, continuo escrevendo com dificuldade. Ainda mais com computador, que torna o trabalho mais lento. Com a facilidade de mexer no texto a gente acaba fazendo mais mudanças do que deveria.

Como descobriu que escrever podia ser algo importante?
Não sei direito. Deve ter sido com uns nove anos, quando o Monteiro Lobato morreu. Eu era leitor fanático dos livros dele. Para mim ele não era nem gente, era atemporal, não podia morrer. Aí eu comecei a escrever aventuras de Narizinho e Pedrinho.

Como foi criar uma obra complexa como "Sargento Getúlio", considerado por muitos seu melhor livro?
Na época eu não tava muito convencido se eu realmente era escritor. Quando acabei o primeiro capítulo não sabia absolutamente o que vinha a seguir. Acho que o reescrevi 17 vezes.
Aí quase mato o meu pobre livrinho. Mudei o ponto de vista, mudei o narrador e me veio a ideia jericoide de alternar um capítulo na primeira e outro na terceira pessoa, um amadorismo deplorável naquela altura.
Ainda bem que meu anjo da guarda me segurou. Ele chama Pepe. Não devia divulgar, na Bahia não se revela o nome do anjo da guarda.

E "Viva o Povo Brasileiro"? Tinha aquela história de "livro bom é livro que fica em pé".
Quem me provocou um livro grosso foi o então editor da Nova Fronteira, Pedro Paulo Sena Madureira. Ele dizia: "Vocês escritores brasileiros só escrevem essas merdinhas que a gente lê na ponte aérea". Aí fiz o livro desse tamanho.
Aliás, ele é frequentemente mal interpretado. Disseram que recontava a história oficial do Brasil do ponto de vista dos oprimidos. Eu nunca pensei nada disso. Seria uma pretensão descomunal.

Chegaram a dizer que o senhor era um misto de Guimarães Rosa e Graciliano Ramos. O senhor concorda?
Nem um pouco. Acho que na época nem tinha lido Guimarães Rosa -e até hoje não sou leitor dele.

O senhor é leitor de quem?
Hoje, de Shakespeare. E de Jorge de Lima, Mark Twain. Fico lendo as mesmas coisas. Gosto muito de poesia, leio os poetas ingleses, gosto de Auden, Dylan Thomas.

O senhor revelou ter tido alguns bloqueios e até um certo pânico, mas também deve ter se divertido escrevendo, não?
Muito! Eu rio e choro com meus personagens, que frequentemente ganham vida própria.
O Nego Leléu de "Viva o Povo", por exemplo, nasceu para ser coadjuvante e se tornou um dos mais importantes no livro. O cônego que esculhamba tudo também. Abriu a boca e não fechou mais. Eu queria matá-lo e não conseguia (risos).
Me divirto tanto que não escrevo na frente de ninguém, só da minha mulher. Me lembro de um episódio engraçado, em Itaparica.
Eu estava escrevendo uma cena do "Viva o Povo", em que o Barão de Pirapuama comete uma grosseria inominável com a baronesa, e eu queria que ela respondesse com uma mesura. Aí eu fiquei na frente da máquina assim (levanta e faz a mesura). Meu compadre Bento viu e achou que eu estava louco!

Ouvi dizer que tem gente que acha que seus personagens são reais, é verdade?
Sim! (ri) Durante um evento numa livraria, um sujeito se aproximou e me disse: "Eu queria muito lhe conhecer pois sou descendente do barão do seu livro". Tentei explicar que não era possível, que o barão era inventado. Ele ficou indignado! (risos)

O senhor já mencionou a literatura como uma porta para a fantasia. Hoje, em que há milhões de portas para a fantasia, o papel da literatura está ameaçado?
Não, a literatura nunca vai perder sua força. O leitor não pode assumir a passividade que assume assistindo a um filme, vendo TV ou até ouvindo música.
Estão acrescentando tantos recursos aos livros eletrônicos que eles estão deixando de ser livros e virando DVDs. Daqui a pouco volta-se ao livro de papel como uma grande conquista.


RAIO-X
JOÃO UBALDO RIBEIRO


VIDA
Nasce em Itaparica, na Bahia, em janeiro de 1941. É membro da Academia Brasileira de Letras

PRINCIPAIS LIVROS
"Sargento Getúlio" (1971), "Vila Real" (1979), "Viva o Povo Brasileiro" (1984), "O Sorriso do Lagarto" (1989), "O Feitiço da Ilha do Pavão" (1997), "A Casa dos Budas Ditosos" (1999), "O Albatroz Azul" (2009)

PRINCIPAIS PRÊMIOS
Ganhou dois Jabutis (por "Sargento Getúlio" e "Viva o Povo Brasileiro") e o Prêmio Camões (2008), o mais importante da língua portuguesa


Frases

"Meu nome era raramente divulgado entre os convidados [da Flip], aí eu decidi não ir. No release aparecia 'fulano, fulano, fulano e outros'. Esse 'outros' era eu. Aí eu disse: outros o caralho!"
JOÃO UBALDO RIBEIRO
escritor


"Fazer 70 é melhor que não fazer, é óbvio. [...] Não chego ao ponto de dizer que a alegria da velhice é poder peidar em público, mas é algo deste jaez, talvez menos escatológico"