segunda-feira, julho 26, 2010

O BC na campanha? Carlos Alberto Sardenberg

O Estado de S. Paulo - 26/07/2010



Vamos falar francamente: o Banco Central (BC) dá sinais formais e informais de que gostaria muito de encerrar o mais rápido possível o ciclo de alta da taxa básica de juros. Não poderia ter feito isso na reunião da quarta-feira passada, porque entraria em total contradição com sua avaliação, expressa em documentos anteriores, segundo a qual a economia brasileira estava crescendo bem mais do que podia, isso gerando pressão inflacionária ampla. Mas com a decisão de aumentar a taxa em "apenas" 0,5 ponto porcentual (p.p.), ante a expectativa majoritária de 0,75 (p.p.), e com o comunicado em que explica essa desaceleração, o BC prepara uma mudança de avaliação. Esta deve ser formalizada na quinta-feira, quando o BC divulga a ata da última reunião e ali detalha fundamentos da decisão da semana passada, quando a taxa básica de juros foi de 10,25% para 10,75% ao ano.


No breve comunicado da quarta-feira, o BC diz que houve uma "redução de riscos" para a inflação, por causa de mudanças recentes aqui e lá fora. Podem ser encontrados números para isso.

O principal certamente foi o IPCA-15 de junho, índice do IBGE, que mostrou queda da inflação mais forte e mais espalhada do que se esperava. Outro: o Índice de Atividade Econômica do próprio BC, indicando que a economia brasileira não cresceu em maio. E mais: o gasto público, um dos fatores de aquecimento citados pelo BC, entra agora numa fase de contenção obrigatória, por causa das regras eleitorais.

Lá de fora, o sinal veio em discurso do presidente do Fed, o banco central norte-americano, Ben Bernanke, feito no mesmo dia da reunião do BC brasileiro e dizendo que a economia dos EUA talvez precisasse de estímulos adicionais para contrabalançar uma recuperação ainda frágil. Isso se somou a dados sobre dificuldades na Europa e desaceleração na China. Falava-se mesmo, há duas semanas, em risco de nova recessão nos EUA (o segundo mergulho).

Colocando tudo isso no caldeirão, resulta: forte desaceleração do crescimento brasileiro e inflação cedendo - isso num ambiente mundial de paradeira. Assim, pode-se brecar a alta de juros por aqui. Faz sentido. Alguns analistas independentes importantes, entre aqueles que "acreditam" no regime de metas de inflação, haviam se antecipado nessa direção.

Mas muitos outros, a maioria, achavam que não era o caso - e isso com base nos últimos textos do próprio BC. Nesses documentos havia argumentos - no sentido de uma alta mais forte de juros - que não foram desmontados pelos novos fatos.

Por exemplo: na ata de junho, o BC dizia que a "demanda doméstica", o consumo local, permanecia forte em consequência de fatores como "o crescimento da renda e a expansão do crédito". Ora, como indicou o IBGE no dia seguinte à reunião do BC, o crescimento da renda dos trabalhadores (consumidores) continua expressivo em qualquer base de comparação. E a expansão do crédito às famílias segue bastante robusta, conforme dados do próprio BC.

O gasto público tem limites eleitorais, é verdade, mas houve muita antecipação de despesas e, sobretudo, aumentos generalizados de salários do funcionalismo e das aposentadorias, um conjunto que, como gosta de justificar o governo, "injeta" bilhões de reais no consumo local.

Em resumo, é bem possível que a forte desaceleração recente da inflação e da atividade econômica tenha sido um fenômeno mais localizado no segundo trimestre do ano, espécie de ressaca diante do crescimento claramente exagerado de 10% anualizado no primeiro trimestre - além dos efeitos férias e Copa, esta reduzindo compras de tudo o que não tem que ver com futebol. E, se for assim, o aquecimento (com a pressão inflacionária) retorna desde já.

Reparem nos dados nessa direção apontados em reportagem do Estado na sexta-feira: empresas importam cimento para dar conta do crescimento das obras residenciais e de infraestrutura; faltam pneus para caminhões e ônibus; tem fila de espera para comprar caminhão; portos congestionados com exportação, mas também com importação, que cresce a quase 50% ao ano; os índices de confiança do consumidor e dos empresários estão em nível recorde; a criação de emprego com carteira desacelerou em julho, mas deve ter sido por causa das férias.

E lá fora? Aí o BC até que deu azar. Nos dias anteriores à reunião da quarta-feira passada, e nessa data, o ambiente global era bastante depressivo. Um dia depois da reunião, porém, os sinais se inverteram: bons indicadores - ou, se quiserem, menos ruins nos EUA; os bancos europeus passando bem nos testes que avaliaram seus riscos; confiança do empresariado em alta recorde na Alemanha; Inglaterra emplacando nove meses seguidos de crescimento, indicando que as maiores economias europeias têm desempenho bom; companhias americanas mostrando bons lucros; Bernanke dizendo que novos estímulos ainda não são necessários; e o primeiro-ministro dizendo que a China só vai crescer um pouco menos, mas continua em expansão forte.

Tudo isso leva de volta ao diagnóstico anterior: a recuperação da economia mundial não é uma moleza, é desigual, mas ainda é uma boa recuperação. E, mais do que isso, os governos e BCs estão preparados para voltar a intervir se a economia privada fraquejar.

E aí, como ficamos?

Toda a tese anterior do BC brasileiro - de que a nossa economia estava consumindo mais do que produzia e importava - permanece sustentável. Isso exige mais alta de juros (como, aliás, estão fazendo outros países emergentes).

Mas também se pode antecipar que há uma desaceleração local e global já em curso, o que dispensa novas altas de juros - que é a tese à qual o BC parece agora querer se associar. Seria mera coincidência que esta tese se ajeita melhor às necessidades políticas do governo Lula e sua candidata?

O BC de Henrique Meirelles trabalhou com independência e transparência inequívocas desde 2003. Derrubou a inflação e a taxa real de juros. Tem moral, portanto. Mas os últimos passos foram, digamos, algo diferentes, esquisitos. Será preciso ler com lente mais forte a ata que sai nesta quinta-feira.