sábado, dezembro 19, 2009

Rubem Fonseca, colaborador do Ipes

Maldito passado

A participação de Rubem Fonseca no Ipes, entidade que deu apoio
à ditadura, é um episódio escamoteado em sua biografia. Uma pesquisa
recente mostra que a colaboração foi mais longa do que ele admite


Jerônimo Teixeira

Publicado em 1975, Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca, seria recolhido pela censura no ano seguinte. O ministro da Justiça, Armando Falcão, autor do despacho que determinou a proibição da coletânea de contos, disse em uma entrevista: "Li pouquíssima coisa, talvez uns seis palavrões, e isso bastou". O livro só seria liberado em 1989, depois de uma longa batalha judicial. O episódio ajudou a conferir uma certa aura contestadora a Rubem Fonseca, como se ele fosse a encarnação real do escritor maldito que protagonizava Intestino Grosso, um dos contos censurados. Mas o embate com a ditadura foi precedido por um episódio ainda hoje recalcado em sua biografia: Rubem Fonseca participou de uma instituição que forneceu estofo ideológico ao golpe que em 1964 apeou o presidente João Goulart do poder. Exerceu cargos de direção no Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, que tinha entre seus membros proeminentes o general Golbery do Couto e Silva, uma das figuras mais cavilosas da ditadura. Fonseca admite sua participação no Ipes até 1964, ano do golpe – mas uma pesquisa recente da historiadora Aline Andrade Pereira revela documentos que atestam a participação do escritor no Ipes até pelo menos 1970.

O Ipes foi constituído em 1962 por grupos empresariais preocupados com os rumos socializantes do governo João Goulart. Uma dessas empresas era a Light, gigante da energia elétrica cujo setor de relações públicas era então dirigido por Fonseca. Entre outras atividades, o instituto editava livros e produzia filmes de propaganda anticomunista. O Ipes daria apoio total ao golpe de 1964. No mês passado, a revista BRAVO (editada pela Abril) lançou nova luz sobre as ligações de Rubem Fonseca com o Ipes em um perfil do escritor. Em 1964: A Conquista do Estado, livro de 1981 do cientista político René Armand Dreifuss, o "romancista José Rubem Fonseca" já era citado como responsável pelos "editoriais de jornal e filmes" produzidos pelo instituto. De fato, um documento do Ipes atribui ao escritor – identificado pelas iniciais do nome, JRF – e ao produtor Carlos Niemeyer a tarefa de revisar roteiros de "filmes sobre as Forças Armadas".

O próprio Rubem Fonseca apresentou sua versão dos fatos em um artigo publicado na Folha de S.Paulo em 1994. De acordo com sua história, o Ipes esteve dividido em duas alas – uma delas fiel aos princípios democráticos e a outra favorável ao golpe. Fonseca dá a entender que se alinhava com a turma da democracia – e que não teve mais nada a ver com o instituto depois de 1964. Não foi bem assim: na tese de doutorado "O verdadeiro Mandrake: Rubem Fonseca e sua onipresença invisível", defendida neste ano na Universidade Federal Fluminense, a professora Aline Pereira levanta documentos do Ipes conservados no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro que atestam a participação do escritor muito depois do golpe. Em 1965, há uma carta de um líder do instituto lamentando a exoneração de Fonseca de suas funções da diretoria – mas, em 1968, outro documento atesta sua recondução aos conselhos decisórios da instituição. Recibos provam a contribuição financeira de Rubem Fonseca até 1970. VEJA tentou contatar o escritor por e-mail, através da assessoria de sua editora, a Agir, para que comentasse esses documentos, mas não obteve resposta.

No ambiente politicamente envenenado das décadas de ditadura militar, a associação com o golpe poderia ser o beijo da morte para um artista (basta lembrar o caso do cantor Simonal). O meio cultural, afinal de contas, era dominado pela esquerda. Ter mantido a ligação com a direita em parte escamoteada facilitou o reconhecimento dos méritos literários – inegáveis – de Rubem Fonseca. Mas a manipulação das datas que o autor promoveu no artigo de 1994, e que não desfez na reportagem da BRAVO, sugere algo mais: sua colaboração com uma entidade golpista parece ser matéria sensível, talvez até um dilema moral para o escritor. Não precisaria ser assim: recluso, ausente dos debates públicos, Rubem Fonseca não é comparável ao alemão Günter Grass, que se erigiu em bússola moral de seu país e depois viveu a desmoralização ao admitir muito tardiamente que fizera parte da Waffen-SS. No ambiente democrático que sucedeu à abertura, no qual tantos remexeram nas feridas abertas na ditadura, teria sido mais salutar que o escritor arejasse sua história no Ipes, em vez de ocultar datas. Para encobrir um equívoco do passado, Rubem Fonseca cometeu outro pior: adulterou os fatos de sua biografia.

Fernando Pimentel
HISTÓRIA AMORDAÇADA
Fonseca (acima.) no fim dos anos 70: censurado. Acima, documento que o aponta
como um dos responsáveis por filmes de propaganda e recibo de contribuição
ao Ipes. Abaixo, assinatura do escritor em ata do instituto