sábado, setembro 19, 2009

Heine, o poeta alemão que inspirou Castro Alves

O avô da poesia engajada

Polemista feroz, mas capaz de poemas puros, que soam como
versos folclóricos, Heinrich Heine abraçou as causas mais
candentes de seu tempo, em particular o combate ao racismo


Nelson Ascher

AKG/Latinstock
SEMPRE NA FRONTEIRA
Heinrich Heine: judeu assimilado que combatia o antissemitismo, ele foi admirado pela imperatriz Sissi e conheceu o jovem Marx

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Duas publicações começam a recolocar em circulação no Brasil a obra de Heinrich Heine (1797-1856), poeta e prosador alemão que andava meio esquecido por aqui. O Rabi de Bacherach (tradução de Marcus Mazzari; Hedra; 128 páginas; 14 reais) traz, além da obra incompleta de ficção que lhe dá título, três artigos contra o ódio racial que o autor escreveu em 1840, por ocasião de perseguições contra a comunidade judaica de Damasco (parte, então, do Império Otomano), com o apoio direto do cônsul francês. Já Navios Negreiros (tradução de Priscila Figueiredo e Luiz Repa; SM; 80 páginas; 30 reais), além do célebre poema de Castro Alves, estampa em nova tradução a balada de Heine que, provavelmente vertida para o francês, inspirou o texto abolicionista do bardo baiano.

Depois do reinado, ainda no começo do século XIX, de Schiller e, sobretudo, de Goethe, foi a figura de Heine que imperou, décadas a fio, na lírica de língua alemã. Personagem de transição entre a era romântica, com sua ênfase na imaginação individual sem peias, e o realismo, com suas preocupações centradas no estado presente da sociedade, Heine sempre habitou regiões fronteiriças de todo tipo. Nascido na Alemanha, optou por passar grande parte da vida adulta na França, a arqui-inimiga de seus compatriotas. Judeu numa Europa que fazia temporariamente de conta que aceitava sem maiores restrições os integrantes, pelo menos os assimilados, de seu povo, ele, mesmo após se converter ao cristianismo por razões de conveniência, sentia as barreiras que lhe eram impostas, minguando aqui para recrudescer adiante. Perfeitamente em casa no seu mundo já moderno, não deixava de ser pungido pela nostalgia de tempos mais definidos, menos instáveis. Era dotado ao mesmo tempo de uma ironia natural e de talento para a lírica mais pura, quase capaz de passar por popular ou folclórica (o que de fato aconteceu quando, no século seguinte, os nazistas, depois de tentar apagar-lhe as baladas mais famosas das antologias, atribuíram-nas à tradição anônima). Heine combinou esses dois elementos - lirismo e sarcasmo - em um amálgama com o qual pouquíssimos se mostraram capazes de rivalizar.

Chamado, com justiça maliciosa, de o maior jornalista da poesia alemã, ele usou, na lírica, os recursos que o tornavam um polemista temível. Na sua prosa, na qual a ficção é rara, fez sucesso com narrativas de viagem, críticas, comentários políticos. Malgrado seus frequentes laivos elitistas (que fizeram dele a leitura favorita da imperatriz austro-húngara Elizabeth, conhecida como Sissi), Heine, em especial nos anos 1830 e 40 - à medida que rompeu com diversas tradições, adotou causas progressistas e conheceu o jovem Karl Marx -, tornou-se, até certo ponto, se não o pai, pelo menos o avô do engajamento que, em outras mãos, renderia algumas páginas notáveis e toneladas de lixo ilegível. Entre seus melhores herdeiros diretos, encontram-se conterrâneos futuros seus, como Bertolt Brecht e Hans Magnus Enzensberger.

Não deixa de ser interessante que, por acidente editorial, ambos os lançamentos abordem e defendam duas causas que logo se interligaram: a abolição da escravidão (no poema O Navio Negreiro) e a emancipação dos judeus (nos ensaios sobre ódio racial). Vistas então pelo poeta como simbólicas do progresso da humanidade rumo à conquista de seus direitos, hoje elas seriam claramente definidas como duas faces do antirracismo. A primeira, graças ao empenho dos abolicionistas, resultou em sucesso. A segunda sofreu um revés traumático no século XX, com a invenção, pela direita europeia, do antissemitismo racial, e, mais recentemente, vem conhecendo retrocessos devido à pura e simples traição da esquerda contemporânea, que se aliou ao que há de pior no islamismo fanático, politizado e racista. Ressuscitasse hoje, Heine, olhando ironicamente ao seu redor, não deixaria de constatar que seus escritos continuam atuais.


As naus da vergonha

Rischgitz/Getty Images
TURBILHÃO DE ESPECTROS
Cena de um navio negreiro: cheiro pútrido e tubarões


Os marinheiros que, a partir de 1807, foram desviados pelo governo inglês para o bloqueio naval aos navios negreiros saídos da África eram capazes de detectar essas embarcações muito antes de avistá-las - pelo cheiro pútrido que delas emanava. Não surpreende que o navio negreiro tenha servido de emblema para dois poderosos poemas abolicionistas - do alemão Heinrich Heine, mordaz no seu retrato dos mercadores de escravos, e do brasileiro Castro Alves, pungente e exaltado na descrição do sofrimento dos negros. Desde seu início, no século XVI, o transporte de escravos excedeu-se na barbaridade: os cativos eram acorrentados em porões escuros, para travessias que duravam mais de dois meses, e exercitados sob chicote no tombadilho para se manter vivos (a dança do "turbilhão de espectros" de que fala Castro Alves). A média de mortalidade era de 15%; se alguma doença se espalhasse, a taxa subia. Os tubarões (que figuram no poema de Heine) seguiam em cardumes as naves, atraídos pelos cadáveres jogados ao mar. À medida que o bloqueio naval apertou, o cenário se agravou. Para fugir dos ingleses, os traficantes adotaram navios mais ágeis, rápidos e, portanto, menores. Os escravos iam deitados às fileiras nos porões, sem altura sequer para se sentar e cercados dos próprios excrementos. Não raro, os sobreviventes seguiam acorrentados aos mortos. Alguns estudiosos especulam que a esses horrores se deve o alto índice de hipertensão e sobrepeso até hoje verificado na população negra do Brasil e dos Estados Unidos: os que apresentavam predisposição para esses problemas se desidratavam e se desnutriam mais lentamente - e eram os que mais comumente resistiam. E, assim, cresceram e se multiplicaram nas Américas.

Isabela Boscov



LIVROS

Trecho de Navios Negreiros, de Heinrich Heine

I

O sobrecarga Heer van Koek
Faz contas em sua cabina;
Calcula o montante da carga,
Seus gastos, o lucro e a propina.

5 "A borracha agrada, e a pimenta –
Quantas sacas de especiaria!
Tenho ouro em pó, tenho marfim,
Mas nada iguala a negraria!

Seiscentos negros consegui –
10 Por uma nica – em Senegal.
À carne rija, aos tendões tesos
Não há ferro que seja igual.

Ofereci em troca aguardente,
Miçangas, estanho e tecido.
15 Consigo quase mil por cento
Se só metade houver morrido.

Se trezentos negros chegarem
Ao cais do Rio de Janeiro,
Pagam cem ducados por peça
20 Na casa GonzalesPerreiro."

Então Van Koek voltou a si,
Interrompendo a reflexão,
Assim que entrou Van der Smissen,
O médico-cirurgião.

25 O corpo esquálido e mortiço,
Verrugas roxas no focinho –
"Então, doutor", bradou Van Koek,
"Como estão meus caros negrinhos?"

Agradecendo-lhe o interesse,
30 Disse o doutor: "A mortandade,
É bom que saibas, nesta noite
Subiu bem mais do que a metade.

Em média vão por dia dois,
Hoje, porém, morreram sete,
35 São três mulheres, quatro homens.
Já pus a perda no livrete.

Fiz a inspeção dos corpos todos:
Não é difícil algum vadio
Bancar o morto, só c’o fito
40 De ser lançado do navio.

Tirei as correntes dos cadáveres
E, como de hábito procedo,
Descarreguei os corpos no mar
Pela manhã, inda bem cedo.

45 Furaram rápido as águas
Os tubarões, de tipos vários.
Estimam muito a carne negra;
São eles os meus pensionários.

Uma vez distante a costa,
50 Os bichos vêm em nosso rasto;
Aventam logo o odor dos corpos
Com ânsia pelo repasto.

É tão burlesca toda a cena
De como trincham até os ossos!
55 A perna é dum, doutro a cabeça;
Os mais engolem os destroços.

Depois de tudo devorar,
Caracoleiam junto à galé;
E satisfeitos me contemplam,
60 Gratos pelo grosso filé."

Mas, suspirando, interrompeu
Van Koek: "E como reduzir
O mal? De que maneira posso
Sua progressão impedir?"

65 Então o doutor replicou:
"Por próprio erro morrem os pretos
Pois empestaram o porão
Com bafos podres, muito infetos.

Há mortes por melancolia
70 Porque se enfadam fortemente.
Um pouco de ar, música e dança
E a enfermidade ninguém sente."

Bradou Van Koek: "Bom conselho!
O meu caríssimo doutor
75 É sábio assim como Aristóteles,
Do rei Alexandre o professor.

O diretordasociedade
De abate e venda de suínos
Possuimesmomuitoespírito
80Masnemmetade do teutino.

Música! Toquemparaosnegros!
Quedancemtodos no convés.
Mas o chicotevaicurar
Quemnão mover as mãos e ospés."

II

85 Do pavilhão do céu espiam,
Cintilando, grandes e vivas,
As estrelas todas, nostálgicas,
Tal como o olhar de belas divas.

De longe contemplam o mar,
90 Que, em toda a extensão revestido
De fosforescência purpúrea,
Emite lúbricos bramidos.

Nenhuma vela adeja, e a nave
parece sem mastro, terrestre;
95 Mas brilham luzes no convés,
No qual a música é o mestre.

Um marujo arranha a rabeca,
O cuca percute o tambor,
O timoneiro toca a flauta
100 E sopra a trombeta o doutor.

Cem negros, homens e mulheres,
Giram, e pulam, e dão berros
Como dementes; compassadas
Tilintam cadeias de ferro.

105 Convulsam de fúria e prazer,
E algumas belas raparigas
Enlaçam com ânsia os parceiros
Enquanto soam as cantigas.

O beleguim, omaîtredesplaisirs
110 Instiga com sua chibata
Os indolentes dançarinos
A logo entrar na zaragata.

Titeutuntá e taratatá!
O som atrai das profundezas
115 Os grandes monstros do oceano
Que ali dormiam na torpeza.

Com sono ainda vêm chegando
Os tubarões, em mais de cento;
Para a nau esbugalham os olhos,
120 Boquiabertos com o portento.

Mas não é hora de comerem
E então bocejam pela espera;
Assim o fazendo escancaram
A goela – e os dentes de serra.

125 Titeutuntá e taratatá –
E, como a dançanão tem cabo,
Os tubarões de raivamordem
Elesmesmos o própriorabo.

Poisquetalveznãoamemamúsica,
130 Como tantos de seujaez.
"Desprezeaqueleque de música
Nãogosta!",disse o bardoinglês.

Taratatá e titeutuntá –
A dança segue noite afora.
135 Perto do mastro o sobrecarga,
Juntando as mãos em prece, implora:

"Em nome de Cristo, poupai,
Senhor, os negros pecadores!
Zangaram-vos, mas bem sabeis
140 Que são, qual bois, inferiores.
Poupai suas vidas, por Cristo,
Que por nós todos padeceu!
Pois, se não restarem trezentos,
O meu negócio se perdeu."

[Tradução: Luiz Repa e Priscila Figueiredo]


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LIVROS

Trecho de Rabi de Bacherach, e Três Artigos Sobre o Ódio Racial, de Heinrich Heine

E enquanto a bela Sara ia ouvindo com devoção, os olhos sempre fixos no marido, ela percebeu que sua fisionomia foi repentinamente desfigurada por horrível rigidez, o sangue como que desapareceu de seus lábios e faces e os olhos saltaram como farpas de gelo; – mas, quase que no mesmo instante, ela viu seus traços assumirem de novo a mesma tranquilidade e alegria anteriores, lábios e faces recobrarem a cor, os olhos se movimentarem satisfeitos; viu, também, como uma disposição frenética, no mais totalmente estranha ao marido, apoderou-se de todo o seu ser. A bela Sara assustou-se como jamais se assustara em toda sua vida, e um pavor gélido levantou-se em seu íntimo – não tanto em virtude das manifestações de horrorosa rigidez que por um momento vislumbrara no rosto do marido como, muito mais, por causa do contentamento posterior deste, que gradativamente ia se transformando em tresloucada animação. O Rabi brincava com o seu barrete empurrando-o de uma orelha à outra, gracejava puxando e enrolando os cachos de sua barba, cantava o texto da Hagadá como se fosse uma modinha e, ao enumerar as pragas do Egito – ocasião em que se deve mergulhar várias vezes o indicador na taça de vinho e lançar ao chão as gotas pendentes – salpicou as moças com vinho tinto e assim surgiram muitas gargalhadas e queixas por causa das gargantilhas manchadas. Toda essa jovialidade efervescente e convulsiva do marido tornava-se cada vez mais estranha à bela Sara; angustiada por inominável apreensão, ela olhava para o movimentado burburinho formado por todas aquelas pessoas que oscilavam rejubilantes para lá e para cá, mordiscavam os delgados pães do Pessach, ou bebericavam das taças de vinho, ou tagarelavam entre si, ou ainda cantavam em voz alta – todos sobremaneira satisfeitos.

Chegou então o momento em que o jantar é servido. Todos se levantaram para se lavar e a bela Sara foi buscar o grande lavatório prateado e luxuosamente adornado com relevos trabalhados a ouro, oferecendo-o sucessivamente a cada um dos convivas em cujas mãos se despejava água. Enquanto prestava esse serviço também ao Rabi, este lhe piscou significativamente com os olhos e esgueirou-se porta afora. A bela Sara foi em seu encalço; o Rabi agarrou incontinenti a mão de sua mulher e, arrastando-a com pressa pelas escuras vielas de Bacherach, transpôs o portão e, sempre apressado, alcançou a estrada que conduz até Bingen acompanhando o curso do Reno.

Era uma dessas noites primaveris que, embora bastante cálidas e estreladas, enchem nossa alma de insólios tremores. As flores exalavam um odor funéreo; maliciosos e atemorizados ao mesmo tempo, os pássaros chilreavam; a lua projetava traiçoeiros reflexos amarelos sobre a torrente envolta num murmúrio sombrio; os elevados rochedos da margem assemelhavam-se a cabeças de gigantes oscilando ameaçadoramente; a sentinela da fortaleza de Strahleck soprava em seu melancólico instrumento, e em meio a tudo isso soou o pequeno sino fúnebre da igreja de São Werner, estridente e zeloso.A bela Sara trazia na mão direita o lavatório prateado, pela esquerda o Rabi ainda a segurava e ela sentia como os seus dedos estavam gélidos e como o seu braço tremia. Mas ela o seguia em silêncio, talvez porque já estivesse acostumada desde muito tempo a obedecer cega e incondicionalmente ao marido, talvez também porque os seus lábios estivessem cerrados por um medo íntimo.

Abaixo da fortaleza de Sonneck, defronte a Lorch, mais ou menos onde fica hoje a pequena aldeia de Niederrheinbach, há um maciço rochoso que se debruça recurvado sobre a margem do Reno. O Rabi galgou esse rochedo com sua mulher, olhou em todas as direções e depois cravou os olhos nas estrelas. Trêmula e trespassada por calafrios advindos de mortais angústias, a bela Sara quedava-se ao lado do marido e contemplava seu pálido rosto que, iluminado fantasmagoricamente pelo luar, contraía-se de quando em quando em expressão de sofrimento, terror, devoção e ira. Mas quando o Rabi, num gesto brusco, arrebatou de sua mão o lavatório prateado e o lançou ao Reno, levantando-se um som abafado, ela não pôde suportar por mais tempo aquela angústia horrorosa e, exclamando "Schadai misericordioso!", caiu aos pés do marido, suplicando-lhe que desvendasse por fim o obscuro enigma.

O Rabi, privado de voz, moveu várias vezes os lábios mudos e disse por fim: "Estás vendo o anjo da morte? Lá embaixo, ele paira sobre Bacherach! Mas nós escapamos à sua espada. Louvado seja o Senhor!" E com voz ainda trêmula de aversão íntima, contou que, enquanto declamava a Hagadá, recostado na poltrona e de ânimo sereno, olhou casualmente debaixo da mesa e lá avistou a seus pés um ensanguentado cadáver de criança. "Percebi então" – acrescentou o Rabi – "que as nossas duas visitas tardias não eram da comunidade de Israel, mas sim do ajuntamento dos ímpios, que combinaram introduzir sorrateiramente aquele cadáver em nossa casa para nos acusar de infanticídio e incitar o povo a nos saquear e assassinar. Não pude deixar transparecer que tinha percebido essa obra das trevas, pois desse modo teria tão-somente apressado minha desgraça, e apenas a astúcia nos salvou a ambos. Louvado seja o Senhor! Nada temas, bela Sara, também os nossos amigos e parentes serão salvos. Os malignos só estavam sedentos de meu sangue; eu escapei de suas mãos e eles contentar-se-ão com a minha prata e o meu ouro. Vem comigo, bela Sara. Vamos para uma outra terra e deixemos a desgraça para trás; e para que ela não mais nos persiga, lancei-lhe como conciliação o último de meus pertences, a bacia prateada. O Deus de nossos antepassados não nos abandonará. – Desçamos, bela Sara, estás cansada. Lá embaixo está o silencioso Wilhelm junto ao seu barco; ele nos conduzirá Reno acima".

Sem emitir som algum e com os membros como que alquebrados, a bela Sara deixou-se cair nos braços do Rabi, que lentamente a levou para a margem abaixo. Lá estava o silencioso Wilhelm – um rapaz surdo-mudo, mas extraordinariamente belo, o qual exercia a pesca e mantinha o seu barco ancorado nesse local, para sustento de sua velha mãe de criação, uma vizinha do Rabi. Mas foi como se ele tivesse adivinhado de imediato a intenção do Rabi; sim, parecia mesmo que estava esperando por ele. Em torno de seus lábios cerrados desenhou-se a mais amorosa compaixão, seus grandes olhos azuis repousaram profundamente significativos sobre a bela Sara e, desvelando-se em cuidados, ele a conduziu ao barco.

O olhar do rapaz mudo despertou a bela Sara de seu torpor; ela sentiu de repente que tudo aquilo que o marido lhe contara não era um mero sonho e torrentes de amargas lágrimas escorreram por suas faces, agora tão alvas como suas vestes. Sentada no centro do barco, era uma dolorosa imagem marmórea; postados ao seu lado, o marido e o silencioso Wilhelm iam remando energicamente.

Seja pelos golpes uniformes do remo, seja pelo balanço da embarcação, ou pelo odor daquelas margens montanhosas onde viceja a alegria, mesmo a pessoa mais angustiada é serenada de maneira especial ao deslizar suavemente, numa noite primaveril e num leve barco, sobre a querida e límpida correnteza renana. Verdadeiramente, o velho e bondoso pai Reno não pode suportar que os seus filhos chorem; aplacando as lágrimas, ele os acalenta em seus braços fiéis e conta-lhes suas mais belas histórias encantadas e promete-lhes suas riquezas mais douradas, talvez até mesmo o submerso e antiquíssimo tesouro dos Nibelungos. Também as lágrimas da bela Sara escorriam cada vez mais suaves, suas dores mais atrozes eram levadas pelas ondas sussurrantes, a noite perdia o seu aspecto tenebroso e as montanhas pátrias saudavam acenando com o mais carinhoso adeus. Antes de todas, porém, saudou-a intimamente sua montanha predileta, a Kedrich, e, iluminada por estranho luar, era como se lá em cima estivesse novamente uma mocinha com os braços medrosamente estendidos, como se uma multidão de ágeis anõezinhos saísse rastejando de suas frestas rochosas e como se um cavaleiro viesse a pleno galope vencendo a montanha. E no íntimo da bela Sara era como se ela fosse novamente uma pequena menina e estivesse sentada no colo de sua tia de Lorch e esta lhe contasse a história do intrépido cavaleiro que liberta a pobre mocinha raptada pelos anões; e ainda outras histórias verdadeiras, a do estranho Vale dos Rumores, que ficava mais adiante e onde os pássaros conversavam racionalmente entre si; e a da terra das broas natalinas, para onde vão as crianças obedientes; histórias de princesas enfeitiçadas, árvores cantantes, castelos de vidro, pontes douradas, ninfas sorridentes. ... Mas, em meio a todos esses contos maravilhosos que, brilhantes e melodiosos, começavam a viver, a bela Sara ouviu a voz de seu pai, que ralhava irritado com a pobre tia porque enfiava tantas tolices na cabeça da menina! Em seguida se lhe representou que a sentavam num banquinho diante da poltrona aveludada de seu pai e este acariciava com aquela mão macia o longo cabelo da filha, sorria satisfeito com os olhos e balançava prazerosamente para lá e para cá, envolto em seu largo camisolão de sabá feito de seda azul. . . Certamente devia ser sabá, pois a toalha florida estava estendida sobre a mesa, todos os utensílios no cômodo tinham sido areados e resplandeciam como espelhos, o administrador da comunidade, sentado com sua barba branca ao lado do pai de Sara, mastigava uvas passas e falava em hebraico; também o pequeno Abraão entrou com um livro de tamanho descomunal e modestamente pediu permissão ao tio para comentar um trecho das Sagradas Escrituras, pois queria que o próprio tio se convencesse de que ele tinha estudado muito na semana passada e merecia agora muitos elogios e doces... Então, o pequeno menino colocou o livro sobre o braço da poltrona e comentou a história de Jacó e Raquel: como Jacó ergueu a voz e caiu em prantos quando avistou sua priminha Raquel pela primeira vez; como Jacó falou-lhe confidencialmente junto à fonte; como depois teve de servir sete anos por Raquel e como esses anos lhe passaram tão depressa; e como ele desposou por fim Raquel e sempre e sempre a amou. . . Subitamente, a bela Sara lembrou-se ainda de que seu pai exclamara em tom divertido: "Será que também tu não irás querer desposar tua prima Sara?", e a isso respondeu seriamente o pequeno Abraão: "É o que desejo, e ela terá de esperar sete anos". Envoltas em luz crepuscular, essas imagens foram passando pela alma da bela mulher – ela se via brincando infantilmente com o pequeno primo, que agora era tão grande e se tornara seu marido, na cabana de folhagens;¹¹ e como eles se deleitavam com as tapeçarias coloridas, os espelhos, as flores e maçãs banhadas a ouro; como o pequeno Abraão sempre lhe fizera carinhos, até que pouco a pouco foi crescendo e se tornando rabugento, tornando-se por fim tão grande e tão rabugento. . . E finalmente, ela está sozinha em casa num sábado à noite, o luar claro penetra pela janela de seu quarto; de repente a porta se escancara e o seu primo Abraão entra como um raio, em trajes de viagem e pálido como a morte. E ele agarra sua mão, enfia um anel de ouro em seu dedo e pronuncia solenemente: "Com isso, tomo-te por minha esposa, segundo os costumes de Moisés e de Israel! Mas agora" – acrescenta trêmulo – "agora preciso partir para a Espanha. Adeus, sete anos terás de esperar por mim!" E ele parte precipitado; chorando, a bela Sara conta tudo isso a seu pai... Ele se encoleriza e vocifera: "Vai cortar o cabelo, pois és uma mulher casada!" – e ele quer sair ao encalço de Abraão para arrancar-lhe uma carta de separação, mas este já transpôs todas as montanhas. O pai volta silencioso para casa e enquanto a bela Sara o ajuda a descalçar as botas de cavalgar e pondera suavemente que em sete anos Abraão estará de volta, ele amaldiçoa: "Por sete anos tereis de mendigar", e pouco depois ele morre.


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