domingo, junho 28, 2009

Sérgio Fausto Problemas na vizinhança

O ESTADO DE S PAULO
"Nuestra lucha no termina, de la resistencia pasamos a la rebelión y de la rebelión a la revolución. Este es el momento de la segunda y definitiva independencia." Eis o trecho mais expressivo da carta que Evo Morales enviou ao IV Encontro Continental de Indígenas de Abya Yala (grosso modo, "as Américas", em língua indígena), realizado na cidade peruana de Puno, ao final de maio passado.

No encontro esteve Alberto Pizango, líder da rebelião que eclodiria na Amazônia peruana cinco dias depois. A rebelião foi motivada por decretos do governo do Peru regulamentando dispositivos do tratado de livre comércio assinado com os Estados Unidos, referentes à exploração de recursos naturais naquela região. Ela terminou com o saldo de 35 mortos (24 deles, policiais).

Morales qualificou o episódio de "genocídio provocado pelo tratado de livre comércio". O governo peruano o acusa de incitar a rebelião. Sem negar a existência da carta, o vice-presidente boliviano, Garcia Linera, saiu em defesa de Morales, invocando a sua condição de "líder indígena" e, por isso, com direito a dirigir-se aos seus liderados, estejam onde estiverem.

Em meio a esse imbróglio, as relações entre Peru e Bolívia, dois países vizinhos do Brasil, chegaram a um ponto de alta tensão. Lima chamou de volta o seu embaixador em La Paz.

Descontados os exageros retóricos de parte a parte, duas coisas ficam claras nesse episódio. A primeira delas é que as organizações indígenas se tornaram um ator político de peso nos países andinos, com poder de veto sobre projetos de "modernização econômica". Nenhum governo democrático poderá realizá-los sem negociá-los com suas lideranças. A segunda é que Morales atua simultaneamente em duas posições conflitantes. Como chefe de Estado, não poderia imiscuir-se em assuntos do país vizinho; como líder de um movimento étnico-social transfronteiriço, sente-se autorizado a desconhecer os limites territoriais da soberania e falar diretamente ao "seu povo", espalhado pelos países andinos e com grande presença no Peru. Sob esse aspecto, embora diferente, Morales se assemelha a Chávez.

O imbróglio entre os dois países não é, pois, nem casual nem trivial, projetando um padrão de conflito regional preocupante. O governo peruano parece ter aprendido a lição, retirando os decretos que deflagraram a rebelião e reabrindo negociações sobre o tema. No caso da Bolívia, um eventual "ajustamento de conduta" pode não estar no horizonte. É que o conflito com o governo peruano serve a Morales em sua política de confrontação interna, que visa à consolidação de seu poder pessoal e do seu projeto de "refundação" da Bolívia.

O projeto de "refundação", que tem eco em todo o mundo andino, busca restituir a Bolívia aos seus "donos originais", não mais liderados pelo rebelde aimara Tupac Katari, herói indígena despedaçado pelos espanhóis ao final do século 18, mas sim pelo também aimara presidente Evo Morales, que conduziria os indígenas, finalmente, à verdadeira independência.

Nessa visão do país, os indígenas representam a única Bolívia autêntica. Nela se depreciam os elementos mestiços da sociedade e da cultura bolivianas. Não por acaso, Morales está empenhado em expelir do panteão dos heróis da pátria os rebeldes mestiços. Estes, a seu ver, "no querian la independencia, sino que proteger sus intereses". Em sua batalha simbólica, Morales reserva à oposição a acusação de pretender fazer com o corpo da pátria o que os espanhóis fizeram com o corpo de Tupac Katari, ou seja, separá-lo em pedaços. Não é uma retórica que aponte para um cenário de convívio e tolerância.

A "retificação oficial" da História vem junto com o redesenho das instituições políticas e jurídicas do país. O processo tem respaldo democrático em eleições e referendos, mas é conduzido com o uso e o abuso de métodos de pressão e coação, como no episódio da aprovação da nova Constituição dentro de um quartel, cercado de manifestantes pró-governo, sem a presença dos constituintes da oposição. Não tem faltado também o recurso a decretos supremos, a exemplo do que se baixou recentemente contra "o terrorismo e a sedição", invertendo a presunção de inocência e prevendo o confisco de bens, nos crimes aí enquadrados. Observa-se, ainda, progressiva asfixia política e financeira das instâncias superiores do Judiciário. Ao mesmo tempo, dá-se alento ao "poder comunitário", que controla votos e territórios, impedindo a presença e o proselitismo político da oposição e coagindo fisicamente os "inimigos do povo".

Tudo isso aponta na direção de uma crescente concentração de poder, eliminação de freios e contrapesos ao Executivo e mobilização dos movimentos sociais a partir da presidência da República e de seu carismático ocupante. Em recente comício, referindo-se às eleições de dezembro próximo, Morales foi claro a respeito de seus desejos: "Ojalá a partir de diciembre de este año podamos tener realmente el poder (...), el Poder Ejecutivo, el Poder Legislativo y el Poder Judicial. (Por ahora) no estamos en el poder, sólo tenemos el gobierno."

Ao Brasil não interessa que a "refundação" da Bolívia, em vez da democratização de suas instituições originalmente oligárquicas, produza um país irremediavelmente cindido, sem perspectiva de alternância no poder e com um governo em "revolução permanente". Muito menos nos interessa que daí resulte instabilidade política em outros países da vizinhança. Em tese, sobram-nos recursos para nos fazer ouvir em La Paz. A questão é saber usá-los.

A Bolívia, esse pequeno país, poderá representar um grande teste para a liderança regional do Brasil: saberemos reforçar nossas credenciais de força democrática e moderadora dos conflitos na região ou reforçaremos as suspeitas de que agimos com parcialidade ideológica e insuficiente apreço à democracia?